Lei Anticorrupção e empresas estatais

    Alex Vasconcellos Prisco 

    A Lei nº 12.846, de 2013, alcunhada de Lei Anticorrupção, dispõe sobre a responsabilidade administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos lesivos contra a Administração Pública nacional e estrangeira. Seu objetivo imediato é sancionar com rigor organizações que se valem do oferecimento de vantagens indevidas a funcionários públicos como ferramenta estratégica para turbinar negócios e interesses privados.

    Procurando maximizar seu raio de incidência, a lei estabeleceu um conceito aberto de pessoa jurídica para fins de responsabilização, o qual abrange sociedades empresárias e simples, personificadas ou não, independentemente da forma de organização ou modelo societário adotado, bem como quaisquer fundações, associações de entidades ou de pessoas, além de sociedades estrangeiras com sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente.

    De outro lado, a legislação bipartiu a administração pública em nacional e estrangeira . A primeira deve ser entendida em seu sentido subjetivo amplo, englobando agentes, entidades e órgãos administrativos ligados aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário dos três entes federativos (União, Estados e Municípios). Já a segunda encampa órgãos e entidades estatais ou representações diplomáticas de países estrangeiros, de qualquer nível ou esfera de governo, bem como pessoas jurídicas controladas direta ou indiretamente pelo país alienígena.

    A sujeição ativa de estatais à lei levanta incertezas. Teriam essas entidades competências sancionatórias?

    Note-se que a largueza da dicção legal põe as empresas estatais, estrangeiras e nacionais, na curiosa situação de se sujeitarem à lei tanto ativa quanto passivamente. Ou seja, em tese, estatais podem não apenas ser punidas, mas também se beneficiar com base na Lei Anticorrupção. Esse último caso ocorre quando a estatal é a vítima da corrupção (como a licitação promovida por sociedade de economia mista em que uma empresa licitante suborna empregado público em troca de benefícios ilícitos no certame). Quando isso ocorre, a Lei nº 12.846 dispõe que a multa, bens, direitos ou valores extraídos do corruptor lhe serão preferencialmente destinados.

    Em relação à sujeição passiva de estatais brasileiras à Lei Anticorrupção, a polêmica repousa nos riscos da alta intensidade do sancionamento administrativo a que essas entidades estariam expostas. É que, pelo menos por determinação constitucional, empresas públicas e sociedades de economia mista prestam serviços públicos essenciais à população e desempenham atividades econômicas relevantes ao interesse coletivo ou imperativas à segurança nacional. Logo, dependendo da magnitude da punição recebida, estatais poderiam ficar inviabilizadas, trazendo mais prejuízos do que benefícios ao interesse público. O Ministro da Controladoria-Geral da União (CGU), Jorge Hage, já se posicionou sobre o tema durante o 2º Congresso Internacional de Compliance. Declarou que as estatais envolvidas em atos de corrupção jamais poderiam sofrer punições extremas, como, por exemplo, o perdimento de bens ou a dissolução compulsória da sociedade. Para justificar o entendimento, afirmou que o princípio da razoabilidade deve prevalecer sobre a letra da lei.

    Esse posicionamento, no entanto, gera duas reflexões. A primeira é se, por uma questão de isonomia, a imunidade às sanções máximas da Lei Anticorrupção seria extensível às empresas não estatais concessionárias, permissionárias e autorizatárias de serviços públicos e de atividades econômicas. O art. 173, § 1º, II, da Constituição do Brasil, determina que sim. A segunda cogitação é se, num país como o Brasil, notório por possuir várias empresas estatais que são verdadeiras pletoras de improbidades, talvez não fosse melhor mesmo extingui-las. No mínimo, a blindagem contra punições extremas da Lei Anticorrupção para estatais em geral causa risco moral, mediante o qual governantes poderão nomear tranquilamente agentes corruptos para dirigir estatais, na certeza de que os bens e a existência da própria empresa serão sempre preservados em caso de eventual descoberta de desvios. Com isso, a pessoa jurídica se eterniza como instrumento de malfeitos, que é justamente o que a lei quer evitar e reprimir.

    A sujeição ativa de estatais à Lei Anticorrupção, por sua vez, também levanta incertezas. Teriam essas entidades competências sancionatórias? Com as estatais estrangeiras o problema não se coloca, pois está previsto que quando elas forem lesadas, competirá à CGUapurar, processar e julgar os atos ilícitos. Não sancionam, só são beneficiárias da autuação. A CGU atua aqui defendendo em nome próprio direito das estatais internacionais, numa espécie de substituição processual administrativa. A dúvida é quando a estatal lesada for nacional: quem teria legitimidade para figurar diretamente no polo ativo sancionador? Seria a própria empresa? Seria o órgão do ente federativo ao qual está vinculada?

    Espera-se, portanto, que a futura regulamentação federal da Lei Anticorrupção traga uma solução uniforme para essa questão.

    Alex Vasconcellos Prisco é mestre em direito econômico e desenvolvimento pela Universidade Candido Mendes (UCAM) e sócio do escritório Prisco, Ottoni e Del Barrio Advogados

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    Fonte: Valor Econômico

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