Em tempos de restrição orçamentária, estabilidade do servidor público volta ao centro do debate sobre reformas. Flexibilização é vista como alternativa para aumentar a eficiência dos serviços estatais
No começo do ano, ao menos 231 servidores públicos concursados, em estágio probatório, da prefeitura de Americana, no interior de São Paulo, receberam notificações com um aviso de demissão. Em estado de calamidade financeira, a administração justificou a medida por estar acima do limite da Lei de Responsabilidade Fiscal para gastos com a folha de pagamentos. Ainda que prevista em lei, a situação é inusitada. Demissões de funcionários públicos são quase impossíveis no Brasil, pois costumam esbarrar na rigidez da legislação, como mostra o próprio caso de Americana, cujo processo foi judicializado, com idas e vindas de liminares contra e a favor – em junho, o Tribunal de Justiça de São Paulo autorizou as dispensas.
Diante da grave crise fiscal atual, o tema volta ao debate, com sugestões de que se reavalie os critérios de estabilidade do emprego no setor público. Atualmente, a regra compreende todos os servidores que passaram em concurso público e que completaram ao menos três anos de trabalho, o chamado estágio probatório. A Constituição Federal estabelece que apenas três motivos podem gerar o desligamento de um funcionário: sentença judicial que não cabe mais recurso, processo administrativo e insuficiência de desempenho, verificada por avaliação periódica.
Funcionários de estatais que passaram em concurso não têm o mesmo direito, mas possuem segurança. Eles ficam submetidos ao regime estabelecido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mas não podem ser dispensados sem justa causa, exigindo que o chefe apresente as motivações. Números da administração federal indicam como os casos são raros. Em 2016, 445 concursados foram dispensados no âmbito federal, segundo o Ministério da Transparência. Trata-se de menos de 1% do contingente total.
Desse grupo, apenas 2,7% foram demitidos por conta de serviço mal feito. O Tribunal de Contas da União (TCU) realizou no mesmo ano um levantamento em 352 organizações federais para entender como estava a gestão de pessoal. O resultado foi preocupante. A auditoria afirmou que na maioria das organizações avaliadas “há deficiências significativas”, reduzindo a capacidade da administração pública de “gerar resultados e benefícios para a sociedade”. “A estabilidade cria um incentivo que não estimula o esforço e a produtividade”, diz Vladimir Teles, vice-diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EESP/FGV).
A ideia é contestada pelos funcionários do governo, para quem a estabilidade garante a atuação dos servidores na defesa dos interesses públicos. “Se não tiver proteção, você não pode tomar medidas que contrariem grandes interesses”, diz Jordan Pereira, presidente do Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central (Sinal). “Já existem ferramentas para exigir maior produtividade dos funcionários.” Além da qualidade do serviço prestado, a estabilidade se torna um problema quando há restrição orçamentária, como ocorreu em Americana e, mais gravemente, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul.
Apesar de não ser um dos maiores contingentes do mundo (ver quadro ao final da reportagem), com um total de 8,9 milhões de pessoas nos três níveis de governo em 2015, os funcionários estatais pesam nas contas públicas brasileiras. O gasto anual com o funcionalismo totalizou R$ 416 bilhões em 2015, com aumento médio de 6,14% desde 1999. “Por se tratar de uma despesa obrigatória, seu crescimento cria restrições para sua alocação em outros tipos de despesa, como investimentos”, afirma Miguel Orrillo, pesquisador da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da FGV (DAPP).
Vale ressaltar que a estabilidade explica apenas parte do peso da folha salarial nos orçamentos públicos. Há dois outros fatores por trás do crescimento dos gastos. A primeira é a Previdência. Funcionários públicos possuem um regime especial, que confere aos aposentados os mesmos ganhos recebidos por aqueles que estão na ativa. A segunda questão é o pacto federativo atual, que transfere aos Estados e municípios responsabilidades, independente das receitas disponíveis para tal.
O número de funcionários nas cidades cresceu 163% entre 1998 e 2015, para 4,9 milhões de pessoas, superando a variação vista nos estados (24%) e no governo federal (25%). “A prestação de serviços é muito ampla no Brasil”, diz Claudio Hamilton Santos, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Um projeto de lei apresentado neste ano busca lidar com essa situação. Elaborado pela senadora Maria do Carmo Alves (DEM-SE), ele prevê que servidores terão seu desempenho avaliado semestralmente e, caso tenham nota abaixo de 30% da pontuação máxima por quatro avaliações consecutivas, serão exonerados.
Também perderá o cargo quem tiver desempenho inferior a 50% em cinco das últimas dez avaliações. A proposta pode ajudar a melhorar o serviço oferecido. “Permitir a demissão de funcionários públicos ajudaria nas contas públicas, mas não resolveria o problema fiscal”, diz Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF). “É muito mais uma questão de gestão dos serviços prestados.” Uma racionalização de gastos que também seria muito bem-vinda.