O seletivo ponto eletrônico do Senado

    Um terço dos servidores é dispensado de registrar presença no sistema, implementado para moralizar a sangria de recursos públicos e identificar eventuais funcionários fantasmas

    JULIANA BRAGA
    ADRIANA CAITANO

    Servidora registra presença: 2.281 funcionários foram liberados da obrigação. A maioria está lotada em gabinetes (Edílson Rodrigues/CB/D.A Press)
    Servidora registra presença: 2.281 funcionários foram liberados da obrigação. A maioria está lotada em gabinetes

    No Senado, um seleto grupo de 2.281 servidores — o equivalente a 34% do total — está dispensado de bater o ponto eletrônico, utilizado para verificar a assiduidade e a presença dos funcionários. Embora a prática não seja ilegal, órgãos de controle, o Ministério Público, entidades de combate à corrupção e especialistas em gastos públicos asseguram que a regalia favorece a abertura de brechas para irregularidades, como a existência de empregados fantasmas. A liberação é mais frequente nos gabinetes. Dos mais de 2,2 mil servidores sem a obrigação de bater ponto, 90% estão lotados nos escritórios dos senadores, seja em Brasília ou nos estados.

    O ponto eletrônico foi instituído no Senado em 1º de abril de 2011, após o escândalo que revelou o pagamento de R$ 6,2 milhões em horas extras para 3.883 funcionários, entre janeiro e fevereiro de 2010, durante o recesso parlamentar. Entretanto, no mesmo dia em que o sistema passou a funcionar, foram criadas exceções à regra. Imediatamente, 1.060 servidores ficaram liberados de registrar presença, 363 a pedido dos senadores.

    Para Frederico Paiva, procurador da República no Distrito Federal, as brechas no sistema não geram apenas ônus ao erário: a falta de punições incentiva as irregularidades. “Não há interesse político para que essa situação mude. Quando sabemos de um caso, investigamos e até conseguimos provar, mas, às vezes, o máximo que se consegue é a exoneração. Em 10 anos, não conseguimos reaver nem um centavo da verba pública gasta com essa prática. A irregularidade acaba valendo a pena. A gente aqui fica enxugando gelo, dá sempre uma sensação de déjà vu”, lamenta.

    O especialista em administração pública da Universidade de Brasília (UnB) José Matias-Pereira ressalta que a dispensa do ponto em si não configura ilegalidade, mas ele estranha o número de dispensas no Senado. “Ninguém tem dúvida de que, eventualmente, para um chefe de gabinete ou um servidor envolvido em atividades de apoio, é difícil exigir que ele cumpra ponto. Mas quando se tem um número significativo, de um terço, há uma janela aberta para proteger apadrinhados”, argumenta.

    Já o coordenador do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), Márlon Reis, defende ser necessária a divulgação dos nomes dos servidores e dos motivos para as dispensas. “Só assim saberemos se não há exageros. O Estado tem de assumir o protagonismo na divulgação dessas informações. A sociedade precisa saber”, cobra. Procurado pela reportagem, o Senado não quis comentar o assunto.
    Dos 81 senadores, apenas dois não dispensam parte dos funcionários do gabinete de baterem ponto: Rodrigo Rollemberg (PSB) e Cristovam Buarque (PDT), ambos do Distrito Federal. “Estou surpreso que sou um dos únicos”, diz o pedetista.

    Segundo Cristovam, que já adotou a prática no passado, a decisão de cobrar o ponto atualmente visa a evitar qualquer desconfiança. “Assim fica claro que não há fantasmas no meu gabinete.” Além de cobrar o ponto, Cristovam proíbe os servidores de fazer hora extra. A única exceção é o motorista. Rollemberg não foi localizado para comentar o assunto.

    Câmara
    Enquanto o Senado lida com um ponto eletrônico seletivo, na Câmara o controle ainda engatinha. A presença dos 15,7 mil funcionários contratados pela Casa é registrado apenas em uma folha manual, e o cumprimento dos horários são observados somente pelos chefes diretos. O aparato eletrônico é utilizado apenas quando há sessão noturna, para marcar horas extras. Anunciado para funcionar integralmente em abril, o sistema está em fase de testes até hoje. O registro eletrônico dos horários de funcionários foi apontado nos últimos dois anos pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pelo Ministério Público Federal (MPF) como medida essencial para conter gastos e evitar a existência de funcionários fantasmas.

    Em março passado, a Casa anunciou que implantaria o sistema para todos os horários e funcionários em abril, o que acarretaria economia de R$ 22 milhões por ano ao parlamento. Mas os primeiros testes começaram apenas em 5 de agosto. Por enquanto, somente 600 servidores efetivos registram a entrada, a saída e o horário de almoço de forma eletrônica. Pelo menos até setembro, os demais continuarão assinando manualmente a folha de ponto.

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