Rubens Ricupero
Exemplos de coragem em defesa de princípios, como é o caso de Saboia, merecem medalha, não punição
São raríssimos no Itamaraty e no Brasil casos como o de Eduardo Saboia, de funcionários que arriscam tudo por motivos de consciência. Só me lembro de dois em minha carreira: o do embaixador Jaime de Azevedo Rodrigues, que protestou contra o golpe de 64, e o de Miguel Darcy, que organizou rede para denunciar no exterior as torturas do regime militar.
É por isso que exemplos de coragem em defesa de princípios merecem medalha, não punições. Seria erro gravíssimo equiparar o ato de Saboia à insubordinação. Ele não agiu contra ordens do governo. Na verdade, não havia ordens e foi preciso agir no vazio calculado de instruções em que deixaram a embaixada.
A Convenção de Caracas sobre asilo diplomático é clara: compete ao país que concede o asilo julgar a natureza do delito e os motivos da perseguição, correspondendo ao governo local o dever de garantir imediatamente a saída do asilado do território. Tolerar que o governo boliviano recusasse o salvo-conduto por 15 meses é mais que condescendência culposa.
Trata-se de cumplicidade com o governo que já expropriou a Petrobras e ocupou suas instalações com tropas do Exército, recebendo em troca afagos, aumentos do preço do gás e apoio brasileiro na campanha eleitoral do presidente Morales.
Compare-se o silêncio frente à Bolívia com a indignação e a campanha pública do governo do Brasil no asilo do ex-presidente hondurenho Zelaya ou o desgaste do relacionamento com a Itália a fim de proteger criminoso condenado por vários homicídios. A diferença é que nesses dois casos os beneficiados eram companheiros de ideologia.
O que prova que, para este governo e o anterior, democracia, direitos humanos e asilo devem ser filtrados pelo prisma ideológico. Só valem se o favorecido pertence à mesma família ideológica.
Veja-se o contraste com o asilo, também na missão brasileira em La Paz, do presidente Hernando Siles, derrubado por golpe militar em 1930 e pai do futuro presidente Hernán Siles Zuazo. Cercada a missão semanas a fio por turbas que exigiam a entrega do presidente, o então representante do Brasil temeu pela própria vida e quis deixar o posto. O Itamaraty, porém, exigiu que ele ficasse e defendesse o asilo com firmeza, obtendo finalmente a saída do asilado.
Desta vez, a decisão de retirar da Bolívia o senador perseguido foi tomada como medida extrema, depois de ter ficado claro pelas mensagens de e-mail que o empenho brasileiro pela libertação era um faz de conta. Se não tivesse feito nada e o asilado se suicidasse, como parecia iminente, o encarregado de negócios teria sido culpado de omissão de socorros.
Criminosos de guerra sempre alegaram que apenas cumpriam ordens. Nem o tribunal de Nuremberg, nem os posteriores, aceitaram a desculpa. Eichmann, exemplar funcionário do Holocausto, acabou enforcado. Valores como a vida, a liberdade e a proteção a perseguidos são incomparavelmente mais altos do que obedecer ordens. Se o governo se omite na sua defesa, cabe ao funcionário o dever de suprir a falha.
Ao mostrar ter a coragem que faltou a seus superiores, Saboia honrou os valores da Constituição e do povo brasileiro. Deve receber reconhecimento, não castigo.