Por Virgílio Afonso da Silva
A Constituição brasileira completou 25 anos no último dia 5 de outubro. E nesse quarto de século muitos clichês já foram e continuam sendo ditos sobre ela. Antes mesmo de ser promulgada, o então presidente José Sarney disse que o Brasil ficaria ingovernável caso ela fosse aprovada. Também antes de ser promulgada, criticava-se sua extensão, seu detalhismo, seu caráter muitas vezes utópico.
Essas críticas não deixaram de ser feitas nos últimos anos. Pelo contrário, a cada aniversário redondo, elas voltam à tona, complementadas pelo clichê mais frequente: a prova de que a Constituição é ruim é a quantidade de emendas que seu texto já sofreu. No décimo aniversário, todos se assombravam com as suas já 19 emendas. Ao completar 15 anos, já eram 40. No vigésimo aniversário, a tendência não havia desaparecido: 55 emendas. E chegamos ao quarto de século com 74 emendas (sempre descontadas as seis emendas de revisão, todas de 1993).
Seguindo essa tendência, em 2038 chegaremos aos 50 anos de Constituição com aproximadamente 150 emendas. E daí?
Talvez esteja na hora de entender que o número de emendas não significa nada em si mesmo. Antes de tudo, pela razão mais simples: a quantidade de emendas não expressa necessariamente o quanto a Constituição foi substantivamente alterada. Assim, ainda que isso possa surpreender muita gente, é preciso que se saiba que, em linhas gerais, a Constituição que temos hoje é praticamente a mesma que tínhamos há 25 anos. A despeito das 74 emendas.
Há, claro, partes cujas alterações foram um pouco mais profundas. Mas esses casos, ao invés de corroborarem, refutam o chavão quantitativo: bastaram duas emendas para alterar significativamente o tratamento constitucional da ordem econômica e a reforma da Previdência foi feita por meio de apenas uma emenda. A quantidade, portanto, não tem relação com a extensão e a profundidade das alterações.
Para aqueles que gostam de falar sobre o tamanho da Constituição brasileira e a quantidade de vezes que ela já foi alterada, a principal base de comparação costuma ser a Constituição dos Estados Unidos: mais de 200 anos de vigência, apenas 27 emendas! O que se ignora, contudo, é que essas 27 emendas talvez tenham transformado o texto original da Constituição americana de forma muito mais contundente do que as 74 emendas à Constituição brasileira.
Além disso, quem conhece um pouco de direito constitucional sabe que a quantidade e a abrangência das emendas a uma constituição podem ser resultado de diferentes variáveis: a complexidade do próprio processo de emendas e a abrangência temática do texto constitucional são duas das principais. É possível afirmar, nesse sentido, que quanto maior a quantidade e o grau de detalhes dos temas abordados e quanto mais simples for o processo de alteração da Constituição, maior tenderá a ser o número de emendas (embora razões históricas e culturais possam mitigar essa tendência).
Quando se fala das 27 emendas em mais de 200 anos de Constituição americana, ou em 74 emendas em 25 anos de Constituição brasileira, essas variáveis são completamente ignoradas, como se todas as constituições do mundo fossem idênticas, tivessem surgido no mesmo contexto histórico, tratassem dos mesmos temas e tivessem idêntico processo de alteração (apenas como informação, para emendar a Constituição brasileira são necessários 3/5 dos votos de deputados e senadores; para emendar a Constituição americana, são necessários 2/3 dos votos de deputados e senadores e a aprovação de 3/4 de todas as assembleias legislativas estaduais).
Mas o que então podemos discutir em efemérides como os 25 anos de promulgação da Constituição, ou o que poderemos discutir quando ela completar 30, 40 ou 50 anos? Parece-me que esses devem ser momentos para balanços sobre o passado, discutir o que deu certo e o que não deu, e para debates sobre o futuro. Soa óbvio, mas não tem sido essa a prática nesses momentos.
A Constituição de 1988 teve o inegável mérito de contribuir com a estabilidade democrática e institucional do Brasil. Além disso, foi responsável por fornecer uma sólida base para ampliação do acesso aos direitos mais básicos, tanto direitos de liberdade, como direitos sociais. Muitos hoje não conseguem perceber a dimensão dessas conquistas. Para quem nasceu ou cresceu nos últimos 25 anos, estabilidade institucional e direitos fundamentais fazem parte do cotidiano. No entanto, história brasileira foi sempre bem diferente. Esse saldo positivo precisa ser destacado.
Mas é claro que esse balanço positivo não pode se transformar em análise ufanista. Há ainda muito o que se discutir e aperfeiçoar. Especialmente sobre os déficits de eficácia de nossa Constituição, que podem ser causados por omissões legislativas (sempre mencionadas, porque, como ocorre com a quantidade de emendas, é possível contar e chegar a um número), mas também por políticas públicas deficientes e por arranjos institucionais que mantêm desigualdades.
Em relação ao futuro, além de enfrentar os déficits que acabo de mencionar, para dar mais eficácia àquilo que a Constituição prescreve é necessário refletir também sobre o que não tem funcionado no texto atual e que deveria ser alterado (sim, por meio de mais emendas). Temas como a reforma política estão sempre na pauta. Mas há questões menos visíveis, que deveriam merecer mais atenção num futuro próximo, como a criação de um sistema tributário mais justo (isto é, mais progressivo e redistributivo), ajustes no pacto federativo, o aperfeiçoamento do processo legislativo, dentre tantas outras.
Diante disso, se, em 2038, tivermos alcançado 150 emendas e essas emendas tiverem possibilitado um aperfeiçoamento de nosso sistema constitucional, se tiverem corrigido alguns problemas, se tiverem garantido mais liberdade e mais igualdade, por que se preocupar com o número?
Virgílio Afonso da Silva; é professor titular de direito constitucional da Faculdade de Direito da USP e colunista convidado do “Valor”. Maria Cristina Fernandes volta a escrever em 22 de novembro.
Fonte: Valor Econômico