Por Cristiano Romero
Um dos temas mais intrigantes do debate econômico brasileiro tem sido entender por que, mesmo depois da forte desvalorização do real nos últimos três anos, o déficit em transações correntes do país não parou de crescer. Os economistas Tony Volpon e George Lei, da Nomura Securities, fizeram um estudo e chegaram à conclusão que a explicação está na política monetária frouxa e nas medidas de controle de preços.
Volpon e Lei procuram enfatizar, em sua análise, o papel dos preços relativos na dinâmica da conta corrente. “Para economias emergentes com forte dependência de exportações de commodities, como o Brasil, a razão entre preços de bens não comercializáveis com o exterior [serviços, por exemplo] e de comercializáveis é o preço relativo chave da economia”, afirmam os dois no estudo.
A partir de 2005, o Brasil se beneficiou de termos de troca (relação entre preços de exportação e de importação) positivos, graças ao modelo de crescimento da China, intensivo em recursos. Isso teve dois efeitos importantes: um efeito riqueza positivo e outro de preço relativo. O efeito riqueza pode ser decomposto em efeitos de renda (tais como receitas de exportação maiores) e de valorização (preços de ações mais altos das empresas exportadoras de commodities). O efeito de preço relativo tornou os bens comercializáveis mais baratos que os não comercializáveis.
Brasília resiste à mudança do modelo de crescimento
Uma economia mais rica consome mais e, graças ao efeito de preço relativo, importa mais. A importação de bens comercializáveis mais baratos prejudica o retorno dos investimentos da indústria local. A tendência é que os empresários destinem os recursos aos setores intensivos em trabalho (os de produtos não comercializáveis).
Na sequência dessa dinâmica, o mercado de trabalho fica apertado e a taxa de desemprego despenca, ajudando a aumentar o ritmo de crescimento da economia, uma vez que mais trabalhadores atuam nos setores de bens não comercializáveis. Nesse ambiente, a inflação sobe e o déficit em conta corrente aumenta. Por fim, como vem ocorrendo no Brasil desde 2010, a indústria entra em estagnação devido à competição das importações e o crescimento como um todo diminui devido à restrição de oferta provocada pelo pleno emprego. Outra razão para o recuo do crescimento é a baixa produtividade do setor de serviços, justamente o que mais avança na economia.
É possível conviver com essa situação, desde que investidores estrangeiros estejam sempre dispostos a financiar o déficit em conta corrente e os termos de troca permaneçam favoráveis. Qualquer mudança nessas condições força a economia a reduzir a absorção doméstica, que, por sua vez, é financiada por poupança externa.
O que Volpon e Lei lembram é que a mudança já está ocorrendo graças à queda do crescimento chinês e ao início da normalização monetária dos países ricos. Desde 2011, os emergentes vêm passando por um ajuste de conta corrente. A Índia, por exemplo, saiu de um déficit de 4,2% do PIB em 2011 para 2% do PIB no ano passado. No Brasil, o que se viu foi o oposto: nesse período, o déficit em conta corrente saltou de 2,1% para 3,6% do PIB. Por quê?
Volpon e Lei calculam que, desde o início de 2011, a taxa de câmbio real teve depreciação de 18% no Brasil. Apesar disso, a razão entre preços de bens não comercializáveis e de comercializáveis aumentou 11%. “Portanto, um real mais fraco não mudou o preço interno relativo chave necessário para reequilibrar a economia”, observa Volpon, que chefia a área de pesquisa de mercados emergentes da Nomura.
Aplicando modelos de regressão, os dois economistas constataram que há hoje grande desconexão entre mudanças na taxa de câmbio efetiva nominal (NEER, na sigla em inglês) e na taxa de câmbio efetiva real (REER). “De 2012 em diante, mudanças na NEER não se traduziram totalmente em mudanças na REER, isto é, a depreciação da taxa de câmbio real foi menor que a esperada durante esse período, dada a queda da taxa de câmbio nominal”, diz o estudo.
Para Volpon e Lei, o que está bloqueando o mecanismo de transmissão dos choques externos e, em última instância, impedindo o ajuste da conta corrente são a frouxidão da política monetária do Banco CENTRAL e o controle de preços. No primeiro caso, se a política de juros é muito frouxa, mudanças na taxa de câmbio são repassadas à inflação. Isso favorece o repasse de choques de preços de bens comercializáveis para preços de produtos não comercializáveis, impedindo o ajuste.
No caso do controle de preços, Volpon e Lei dividiram os preços regulados em duas categorias – comercializáveis (gasolina) e não comercializáveis (tarifa de ônibus) – e recalcularam o índice de comercializáveis. A conclusão é que os preços dos comercializáveis são menores. “Uma vez que o sinal importante de preço, necessário para reequilibrar a economia, é uma queda na razão entre preços não comercializáveis e comercializáveis, um patamar menor de preços comercializáveis faz essa razão aumentar, impedindo o reequilíbrio”, explicam.
“O Brasil precisa ver uma taxa de inflação mais alta nos produtos comercializáveis. O controle de preços significa que essa “boa inflação” não está acontecendo”, diz Volpon.
Em exercício similar registrado nesta coluna (Valor, 08/01/2014), economistas do Instituto Brasileiro de Economia da FGV (Ibre) atribuíram a ausência de ajuste de preços relativos a três fatores: o mercado de trabalho apertado, que mantém os preços dos serviços pressionados; os incentivos fiscais para o consumo de comercializáveis, medida que vai na contramão do ajuste de preço relativo; e a política de controle de preços dos combustíveis, que diminui o repasse da desvalorização do real para os preços domésticos.
Como se vê, os desequilíbrios da economia brasileira, que se refletem em indicadores como o de transações correntes, foram e continuam sendo produzidos por decisões equivocadas de Brasília e não por maquinações do mercado ou de gente malvada que vive nos países ricos. O conserto vai custar caro.
“Quanto mais as políticas “isolam” a economia interna das mudanças da taxa de câmbio nominal, mais a taxa de câmbio real terá que depreciar para atingir o mesmo impacto na conta corrente”, advertem Volpon e Lei.
Cristiano Romero é editor-executivo e escreve às quartas-feiras
E-mail: cristiano.romero@valor.com.br
Fonte: Valor Econômico