Por Angela Bittencourt e Lucinda Pinto | De São Paulo
O dólar foi a vedete da eleição de 2002 que consagrou a chegada da esquerda ao poder no Brasil, com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência. Em surtos consecutivos de alta, o dólar ameaçou a economia com tamanha desorganização que o PT afiançou a “Carta aos Brasileiros” – documento que sancionou a manutenção do tripé macroeconômico herdado da administração do PSDB de Fernando Henrique Cardoso – junto ao setor privado. Neste ano, graças ao clima de incerteza que impera na economia, o real se tornou o abrigo seguro, inclusive, para grandes investidores estrangeiros.
A menos de duas semanas para o segundo turno da eleição presidencial, é compreensível a insegurança de todos. Nas últimas pesquisas, Dilma Rousseff, candidata à reeleição pelo PT, e Aécio Neves, pretendente pelo PSDB, estão em empate técnico. Não foi sempre assim.
O interesse em manter dinheiro ao alcance da mão durante um ano eleitoral marcado pelo nervosismo, em evidente transformação no cenário político interno e com poucos avanços nas condições econômicas domésticas produziu uma concentração brutal dos investimentos no curto prazo. Preferência que é manifestada pela expansão de compras temporárias de títulos públicos da carteira do Banco CENTRAL (BC) pelos bancos, que assumem o compromisso de revender os papéis em determinada data e recebem em troca juro próximo à Selic. São as chamadas operações compromissadas.
Em menos de 90 dias essas aplicações saltaram R$ 230 bilhões, para R$ 920 bilhões, confirmando mais um recorde. Em março, o estoque estava em R$ 651 bilhões – de lá para cá, o avanço, portanto, foi de 41,3%. Um marco simbólico será alcançado em 1º de janeiro de 2015 – dia da posse do presidente da República -, quando as compromissadas devem totalizar R$ 1 trilhão, aproximando-se de 20% do Produto Interno Bruto (PIB).
As operações compromissadas do BC com o mercado explodiram nos últimos quatro anos, saltando de 10,6% do PIB em janeiro de 2011 para 18,2% do PIB em 1º de outubro de 2014, quando o saldo dessas aplicações basicamente de curto prazo atingiu R$ 900 bilhões. É por isso que, crescendo ao ritmo de dois pontos do PIB a cada dois meses, as compromissadas avançam para R$ 1 trilhão, calculou, a pedido do Valor, o economista José Roberto Afonso, pesquisador do IBRE/FGV.
Afonso alerta que o peso das operações compromissadas já elevou a dívida bruta acima de R$ 3 trilhões pela primeira vez e a 60,1% do PIB. Pela expansão dessas operações curtas, a dívida bruta deve fechar outubro acrescida em dois pontos, voltando ao mesmo patamar de cinco anos atrás, no auge da crise financeira global. “Com a diferença que agora não há a mesma crise lá fora”, diz o economista, que recorda ser o saldo das compromissadas comparável a 3,3% do PIB ao fim de 2006, tendo saltado 11,6 pontos do produto até agosto deste ano, para 14,9%. Neste mesmo período, as reservas internacionais cresceram 8,9 pontos, enquanto a dívida mobiliária em mercado encolheu em 4,2 pontos, e a base monetária em 0,5 ponto.
A quantidade espetacular de dinheiro encastelada no curto prazo, que desde abril é remunerada a taxa próxima a 11% ao ano – patamar em que a Selic permanece por decisão do Comitê de política monetária (Copom) -, tem duas origens já consideradas “clássicas”: resgate de títulos da dívida pública que eventualmente não são substituídos pelo Tesouro Nacional e atuações do BC no mercado cambial, quando entrega reais na liquidação de operações. Na década de 2000, o BC comprou ano após ano dólares no mercado à vista, pagando reais aos bancos que aplicavam esses recursos em títulos públicos no BC. Boa parte do saldo de US$ 370 bilhões das reservas cambiais do país foi obtido dessa forma.
Nos últimos anos, o BC se afastou do mercado à vista de dólar e assumiu o papel de provedor de hedge cambial por meio de derivativos, lançando contratos de swap cambial na BM&FBovespa – onde assume o risco da variação do preço do dólar contra o mercado que assume o risco da oscilação da taxa de juro contra o BC. As diferenças entre as variações são ajustadas diariamente e em dinheiro. Considerando que a posição de swaps do BC se aproxima de US$ 100 bilhões em mercado, os ajustes de preços têm efeitos monetários importantes. A desvalorização do real ante o dólar, de quase 9,5% em setembro, obrigou o BC a transferir mais de R$ 18 bilhões ao mercado apenas para os ajustes dos contratos de swap cambial.
Afonso, do IBRE, reconhece essas influências, algumas inclusive sazonais, para ampliar a liquidez nos bancos, mas não minimiza a importância da garantia de rentabilidade em prazos de aplicação tão curtos em um país onde a inflação em 12 meses mira 7%. “Se o BC está precisando tirar dinheiro de circulação, esterilizar moeda, é porque algo até então representado por um título, uma aplicação, um registro virtual e contábil, foi convertido em moeda. A ação do BC é só consequência, desdobramento, que nós, economistas, chamamos de monetização”, afirma o economista, que alerta para o fato de este fim de ano não diferir substancialmente do fim de 2002.
“Lá, o temor era o desconhecimento em relação ao que seria o governo eleito. Aqui, o pavor é com um governo reeleito e muito bem conhecido e sem emitir qualquer sinal de que pretende mudar. Quando a incerteza se radicaliza, o setor privado – dos bancos às empresas e famílias – corre para o dinheiro. Na economia moderna, dinheiro não é apenas mais base monetária, mas muito vira dívida pública. Na economia brasileira, cada vez mais parcelas da dívida pública se transformam em operação compromissada, que tende a render tanto quanto os papéis emitidos pelo Tesouro, acima de algumas aplicações privadas, e ainda tem duas vantagens imbatíveis – liquidez absoluta e garantia plena – porque, por meio delas, o BC revende títulos do Tesouro que estavam em sua carteira”, diz Afonso.
O real se tornou tão irresistível a gregos e baianos, especialmente com a percepção certeira de que o Brasil caminharia para a mais emocionante e imprevisível eleição da era republicana, que até as empresas – historicamente discretas quando distantes do investimento na produção – neste ano, até agosto, segundo dados do BC, aplicaram R$ 189 bilhões em operações compromissadas do BC. No ano, as companhias não-financeiras elevaram em R$ 50 bilhões os financiamentos temporários em títulos do governo. De janeiro de 2011 até agosto deste ano, portanto durante o governo Dilma, o volume de aplicações das empresas no BC cresceu R$ 120 bilhões.
Câmbio pode ajudar dívida pública
O governo tem uma carta na manga para, ao menos, encerrar este ano e os quatro da gestão Dilma Rousseff atenuando as críticas pela condução da política fiscal: o câmbio. A depreciação de 9,5% do real na comparação com o dólar em setembro derrubará a dívida líquida em cerca de R$ 70 bilhões. Este será o efeito da variação da moeda sobre a dívida líquida, que não cairá isso tudo porque outros fatores exercerão pressão oposta.
“O déficit nominal será pressionado por juros, swaps cambiais e um novo déficit primário. Em setembro, o governo paga a metade do 13º salário dos aposentados”, informa Fernando Montero, economista-chefe da Tullet Prebon Brasil. Na prática, porém, o resultado líquido é a forte queda da relação Dívida/PIB que poderá ser capitalizado pelo governo junto ao mercado e agências de rating.
“O Governo Dilma esgrimia até recentemente o primário (artificial) e uma Dívida/PIB baixa como sinais de solidez fiscal. Abandonado o resultado primário – quase zerado este ano – e minimizando uma dívida bruta elevada, restou-lhe a dívida líquida”, comenta Montero.
O câmbio, que pode dar uma força na política fiscal com sua variação intensa, é o mesmo que multiplica reais, ativa a liquidez nos bancos e mantém o Banco CENTRAL em ação, acionando as compromissadas como instrumento de gestão de liquidez. Com a compra ou venda temporária de títulos federais de sua carteira, o BC recolhe ou injeta dinheiro em circulação. Essas intervenções são normais a um Banco CENTRAL, mas não em montante próximo a US$ 400 bilhões ou a 50% do saldo da dívida pública.
Felipe Salto, da Tendências Consultoria, também especialista em finanças públicas, vê a expansão acelerada das compromissadas como consequência da elevação do custo de financiamento da dívida pública (na qual se incluem as compromissadas), já que o prazo médio dessas operações é bastante curto. “Essa expansão é reflexo, a meu ver, de um problema que se origina no Tesouro. A estratégia de colocação de títulos prefixados a um custo baixo não tem surtido o resultado esperado, não tem encontrado demanda suficientemente elevada e o mercado acaba no “guichê” do BC. E o BC cumpre o papel de evitar o excesso de moeda e, portanto, o distanciamento da taxa do mercado aberto em relação à metaSelic.”
A concentração de dinheiro no curto prazo, entende Salto, revela também a péssima qualidade da política fiscal. “O mercado confia cada vez menos na política econômica adotada pelo atual governo. Embute, portanto, juros elevados para o futuro e, com isso, acaba demandando remuneração excessivamente elevada para financiar o setor público. É por esse motivo que o Brasil voltou a sustentar uma despesa com juros novamente na casa de 5% do PIB e um déficit nominal da ordem de 4% do PIB.”
O economista da Tendências não vê operações compromissadas equivalentes a quase 20% do PIB – onde chegarão em janeiro de 2015 – um motivo de preocupação. E entende que a preferência pelo curto prazo é mais o reflexo de um problema maior – desmonte da política fiscal em vigor entre 1999 e 2007 – do que uma questão em si. “O BC melhoraria a gestão das compromissadas e reduziria a sua exposição se houvesse um setor público menos expansionista em operação na economia nacional”.
O economista Márcio Garcia, da PUC-Rio, concorda que a concentração de moeda no curto prazo não é um problema. “Os investidores vivem comparando taxas de rentabilidade para entrar na aplicação mais atraente. Se o Tesouro oferecesse em leilão títulos com prazos mais curtos, ou pagasse mais pelos prazos mais longos, a concentração seria reduzida. Mas o Tesouro não quer comprometer as estatísticas”. Garcia considera um equívoco cortar o estoque de LFT enquanto o saldo das compromissadas dispara.
Fonte: Valor Econômico