Congressistas se utilizam de brechas na decisão do Supremo que veta o emprego de familiares para manter primos e sobrinhos na folha de pagamento
“O exemplo mais funesto que pode haver, a meu juízo, é o de criar uma lei e não a cumpri-la, sobretudo quando sua não observância se deve àqueles que a promulgaram”
Nicolau Maquiavel, em Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (século XVI)
Os senadores continuam generosos quando se trata de contratar os próprios parentes para cargos em seus gabinetes ou nos escritórios que mantêm com verba pública nos estados. Assim como na Câmara, como revelou ontem o Correio, alguns senadores se aproveitam de brechas na Súmula Vinculante nº 13, do STF, para contratar primos, sobrinhos-netos e outros parentes “de quarto grau”, com gordos vencimentos. Em 2008, o Senado teve de expurgar os parentes mais próximos dos parlamentares, quando a súmula entrou em vigor: na ocasião, cerca de 80 parentes comissionados foram cortados. A prática, no entanto, continua viva. Juntos, os parentes de senadores listados pela reportagem recebem cerca de R$ 39,4 mil líquidos, por mês.
Vários dos primos de “quarto grau” ocupam cargos nos escritórios dos senadores nos estados. A maioria desses funcionários é desconhecida pelo servidores que atuam nos gabinetes em Brasília. Ao responder questionamentos nas salas do Congresso, eles dizem desconhecer o nome do parente e alguns chegam a afirmar que eles não trabalham para os parlamentares. Minutos depois, “identificam” que o contratado “atua no estado” e retornam justificando o desconhecimento. A cena se repetiu pelo menos cinco vezes no Senado. Ontem, o Correio mostrou uma dezena de casos de parentes de deputados que trabalham na Câmara. Juntos, eles faturam por mês R$ 55 mil líquidos em salários.
Em um dos casos, no gabinete do senador Telmário Mota (PDT-RR), a funcionária rebateu a informação de que Telmar Mota seria o motorista dele, como consta no Portal do Senado. Depois, confirmaram se tratar do motorista que o senador mantém no estado, para atendê-lo quando não está em Brasília. O chefe de gabinete, Ayres Neves, explicou que Telmar é filho de um sobrinho do senador, “o que não alcança a súmula do nepotismo”, segundo ele.
Para conduzir o senador em Roraima, Telmar recebe um salário de R$ 3,7 mil, além de R$ 835 de auxílios, desde a contratação, que ocorreu em 4 de fevereiro deste ano. No estado, não há como fiscalizar como e se o filho do sobrinho presta os serviços ao parlamentar. O responsável por conferir se tudo está correto é o próprio senador, que passa a semana em Brasília e volta a Roraima, geralmente, nos fins de semana.
No gabinete do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), a comissionada Roseanne Flexa Medeiros justifica ser prima do senador, que também não se encaixa nas restrições da legislação que trata do nepotismo. “A servidora não se enquadra nas restrições impostas pela súmula publicada no Diário Oficial da União de 29 de agosto de 2008”, diz nota oficial do gabinete. Ela trabalha em Brasília desde 2009 e tem salário de R$ 9,4 mil. “A servidora tem vínculo colateral de quarto grau com o senador”, justificou a nota.
O chefe de gabinete de Davi Alcolumbre (DEM-AP), Paulo Boudens, deu uma dica para entender o que exatamente os parlamentares e seus assessores entendem como “primo de quarto grau”. “A súmula do STF proíbe a contratação dos parentes próximos. Então, é o caso de pais e filhos, que são de 1º grau, dos irmãos, que são em 2º grau, e dos sobrinhos, em 3º grau. O primo é considerado de 4º grau.” A explicação está correta, do ponto de vista da lei brasileira. “A súmula fala em parentes até o 3º grau, em linha direta e colateral, o que exclui os primos. Então, a partir daí, já não se trata mais de nepotismo, do ponto de vista jurídico”, diz o juiz de direito Marlon Reis, do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE).
O próprio Davi emprega, em seu escritório de Macapá, a mulher de um primo, Vânia Alcolumbre. Segundo Boudens, ela cuida dos contatos políticos do primo no estado. “A gente, aqui em Brasília, não conhece todas as pessoas que são das relações do senador no estado”, disse. Vânia já trabalhava com Davi Alcolumbre desde os tempos da Câmara, onde ele exerceu três mandatos. Outro primo em uma posição de destaque é o do líder do PSDB no Senado, Cássio Cunha Lima. Funcionário do quadro do Senado desde 1982, Flávio Romero Moura da Cunha Lima recebe cerca de R$ 4,7 mil adicionais para atuar como chefe de gabinete de Cássio.
“Na verdade, há um ranço muito grande de patrimonialismo em toda a administração brasileira”, diz o professor da UnB e especialista em administração pública José Matias-Pereira. “E o patrimonialismo consiste exatamente nisso, numa confusão entre o que é público e o que é privado. É uma herança que começou a ser desfeita nos anos de Getúlio Vargas, e mais recentemente, com a reforma gerencial (1995)”, disse. “Mas, ao que parece, esse modelo patrimonialista vem sendo retomado nos últimos anos, com o aparelhamento do Estado. Há uma sensação de que tudo é permitido, de que o dinheiro público está aí para ser usufruído como bem entender”, avalia o professor. “Essa postura, de confundir público e privado, chega ao ápice em casos como o do petrolão”, avalia ele.
O que diz a lei
Em agosto de 2008, o Supremo Tribunal Federal publicou a Súmula Vinculante nº 13, sobre o nepotismo. A rigor, o STF não criou uma regra, apenas consolidou o entendimento de que a contratação de parentes em cargos comissionados viola a Constituição de 1989. Diz a súmula: “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o 3º grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função gratificada (…) viola a Constituição”. A Carta Magna, em seu artigo de nº 37, estabelece que a administração pública é regida, entre outros, pelos princípios da moralidade e da impessoalidade, incompatíveis com a contratação de familiares. Apesar de proibir o chamado nepotismo cruzado, a súmula do STF não considera nepotismo, por exemplo, a contratação de primos. Também não veda que uma autoridade do nível federal indique parentes e cargos comissionados em um governo estadual, por exemplo.
“Há uma sensação de que tudo é permitido, de que o dinheiro público está aí para ser usufruído como bem entender”
José Matias-Pereira, professor da UnB
Memória
Até 2008, era festa liberada
O Legislativo já foi muito mais generoso na contratação de parentes de parlamentares. Na edição de 7 de março de 2007, o Correio publicou um levantamento de 61 parentes empregados nos gabinetes dos deputados. “Somando os novos apadrinhados com aqueles que já estavam abrigados desde a legislatura passada, já há 61 parentes empregados nos gabinetes de 51 deputados como secretários parlamentares. São pelo menos 16 filhos e 12 mulheres de parlamentares, além de irmãos, cunhados, sobrinhos, primos, genros, noras e netos”, dizia o texto.
Na ocasião, o ex-ministro Geddel Vieira Lima empregava o irmão, Lúcio Vieira Lima, hoje deputado pelo PMDB da Bahia, no próprio gabinete. O ex-deputado José Rocha, do PFL baiano, saiu-com uma resposta “filosófica” ao ser questionado pela reportagem sobre o fato de empregar a própria filha, Ticiana Azevedo Rocha, em seu gabinete: “O parentesco é uma questão filosófica, pois quem não é seu parente hoje pode ser amanhã”, disse ele. Meses antes, o então presidente da Câmara e hoje ministro da Ciência e Tecnologia, Aldo Rebelo (PCdoB), havia baixado um Ato da Mesa proibindo a contratação de parentes nos chamados Cargos de Natureza Especial (CNEs). A festa nos gabinetes, entretanto, continuava liberada. A situação só começou a mudar em 2008, com a edição da Súmula nº 13, do STF, que veda o nepotismo em todos os órgãos da administração pública.
Fonte: Correio Braziliense