A MANGA

    Era o primeiro domingo do novo ano de 2005. A amiga Marlene me convidou para ir almoçar com a família dela na sua casa, também nova. Não sou muito de almoçar fora,  (é uma de minhas manias bobas) mas quanto a jantar, tudo bem. Acabei porém por contrariar minha rotina e aceitei o convite da amiga. Afinal há muitos anos eu não me reunia, para um almoço, com tantas pessoas amigas, pessoas que hoje considero a extensão da minha família. Isto acontecia aos domingos na minha infância e juventude na casa de meus pais e avós, em Belém do Pará. E ninguém faltava, se fizessem uma “chamada” só se ouviria como resposta: “presente”. Mas, a vida vai derrubando nossas alegrias e mesmo nossas tristezas, separando as pessoas por várias razões. O tempo continua sua marcha implacável. Muitos anos depois, já casado com Zezé, essas reuniões domingueiras em família voltaram a se repetir na grande casa de minha cunhada, Jomar, no Rio, no bairro do Rocha.  Nós sempre comparecíamos. Após o almoço as opções eram uma boa sesta e a seguir diversão a valer com vários tipos de jogos, da mesa ao quintal. Após algum tempo novamente a vida alterou um script tão agradável, uma rotina sempre enfeitada de felicidade. As pessoas têm mesmo um livre arbítrio para modificar seus destinos ou este já é um compromisso que vem marcado na pauta do viver de cada um?! Cada qual deve ter uma resposta diferente e nesta crônica o objetivo não é levantar qualquer polêmica, muito ao contrário. Então saltemos mais alguns anos no tempo e, quanto a este texto, voltemos ao primeiro parágrafo, ou ao novo lar de Marlene. Lá estavam avós, mães, filhos, irmãos e irmãs, sobrinhos e sobrinhas além de alguns amigos bem chegados da família. Quando Dinha, irmã de Marlene, “tocou o rancho”, procuramos entrar em forma com nossos pratos e uma fome que nos unia ainda mais por este laço. O cardápio estava ótimo. Havia dezoito bocas a serem alimentadas, além do meu pequeno Touche e da, não tão pequena, Tuhani, cadela de Marlene.  Depois do almoço, cada um foi se entregar à digestão de alguma forma. A mim foi oferecida a suíte do casal, é, suíte sim, como define o dicionário: “Quarto de residência que tem anexo um banheiro exclusivo.” E que quarto, amigos. Não pude recusar, até porque de sesta eu entendo muito, afinal sou paraense, não esqueçam. Já estando deitado procurei relaxar. Havia muito espaço à disposição do meu corpo, pois a cama é maior do que habitualmente são as camas de casal. Virei-me para o lado direito e meu olhar se dirigiu para a janela que se abre para o quintal que ladeia a casa. Nele há algumas árvores frutíferas, mas, emoldurada pela janela, estava ali uma frondosa mangueira.  Destacava-se entre sua folhagem uma bonita manga. Seu tamanho e sua cor indicavam que estava mesmo às vésperas da maturação. Este fato era acentuado pelos raios de um sol brilhante e festivo do verão cabo-friense. Parecia que sorria para mim. Se já disse que entendo de sesta, de manga entendo mais ainda pelo mesmo fato de ser paraense. Afinal, minha terra natal, Belém, é conhecida como “terra das mangueiras”. Suas ruas e avenidas ainda hoje permanecem enfeitadas por essas árvores que, segundo consta, têm sua origem na Ásia. Deixei-me ficar mirando aquela manga espada até adormecer. Mesmo sendo apenas um estado de sesta acabei por mergulhar num sonho, sonho que me transportou para o passado. Vi-me um menino a correr para a rua com um paneiro nas mãos. Trata-se de um cesto de vime, com ou sem alças. Quando o vento e as nuvens anunciavam que logo iria chover, a garotada costumava “armar-se” de paneiros  e ir disputar as mangas que o vento se incumbia de lançar ao solo. Nos divertíamos bastante antes que os primeiros pingos de chuva iniciassem a precipitação. No ritmo do sonho saltei para as praias da Ilha de Mosqueiro. Acompanhando as ruas de chão que ladeavam as praias de Chapéu Virado havia muitas, muitas mangueiras. Geralmente eram mangas rosa, de cor bem viva, numa mistura de vermelho com amarelo que me fascinava. E que cheirinho agradável. No silêncio de após o almoço eu costumava caminhar por ali, à sombra, admirando as árvores e seus lindos e saborosos frutos. É mesmo indescritível a sensação de paz e de felicidade que tomava conta de mim. O “fundo musical” ficava por conta das poucas ondas de água doce que vinham beijar e acariciar a areia das praias. O silêncio e a brisa suave que amenizava o calor completavam um autêntico quadro de paraíso.  De repente o sonho me atirou à lembrança de uma disputa, com outros amigos da rua, numa daquelas conhecidas “chuvas de manga”, no bairro do Marco, onde morávamos. A certa altura um dos garotos, maior do que eu, preparou um soco e o lançou com precisão sobre meu rosto. Ao me defender, erguendo a mão esquerda, tomei o impacto do soco no dedo indicador. Como doeu. A pancada se dera especialmente na junta próximo à unha. Inchou de imediato e logo deu para perceber que seria difícil corrigir o mal causado à minha mão. Apesar das mandingas feitas por minha avó, dos passes e medicamentos tantos aplicados ao meu dedo, tenho convivido a vida inteira com este deslocamento da falange do mesmo.   Talvez como compensação, o sonho arrastou-me, a seguir e suavemente, para outra cena real do meu passado por sinal ocorrida na noite do mesmo dia do fato acima relatado. Nesta havia um cupido à volta de mim, e versos de um amor juvenil, quase infantil, que me embalavam para uma declaração que eu temia fazer.  A menina a quem eu me dirigia era muito bonita, da minha idade, mas minha timidez era um forte obstáculo. De repente, naquele impulso que meu coração me impôs, acabei por lhe tocar as mãos e os cabelos. Ela permaneceu inerte, estava nervosa. Ofereci-lhe como prova do meu amor um troféu que eu conquistara naquela  tarde, na mesma ocasião em que quase perdera o meu dedo indicador. Foi no final dos anos 40, tinha eu 13 para 14 anos. Ela sorriu já meio consentida, estendeu devagar sua mão direita e afagou carinhosamente… a linda manga que eu lhe ofertara.  Os versos, nervosamente por mim pronunciados, parece que ajudaram pouco, pois a conquista já se concretizara naquele presente que mereceu dela um morno beijo na minha face, em agradecimento. Éramos ambos crianças e personagens de um tempo que decerto não voltará mais.  Naquele momento eu despertei. A manga continuava lá. Eu retornara ao mundo real do presente que, num piscar ou fechar de olhos, vira passado. Saí do quarto e fui contar à amiga Marlene o “tour” a que meu espírito se entregara durante um longo sonho. Sonho que, daquela vez, foi um reviver e não algum passeio por devaneios, por fantasias, ou por aspirações do meu subconsciente.  Ela me ouviu, sorriu e, antes que eu saísse pediu-me que a esperasse ali mesmo. Logo a seguir a amiga voltou trazendo nas mãos a manga, a mesma que me levara a tantas recordações do meu passado. Ofertou-me a fruta dizendo que ela agora mais pertencia a mim do que a ela. Não pude recusar.

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