CAPITALISMO: O PERIGO MORAL?

    Faleceu recentemente o professor Rudiger Dornbusch, do MIT, nos Estados Unidos. Na edição 197, de 25.02.2002, a Revista Época publicava matéria com o título de “O Maior Perigo Moral”, de autoria de Paulo Moreira Leite, diretor de redação da revista. O assunto era o capitalismo  atual na visão crítica do Sr. Dornbusch. Àquela altura, mês de fevereiro deste ano, algumas grandes empresas americanas já marcavam presença em todos os noticiários internacionais por escândalos de manipulação contábil, envolvendo até importantes firmas de Auditoria, com cifras astronômicas. Ações, como as da empresa WorldCom, haviam se reduzido a pó. Os prejuízos para milhões de acionistas foram devastadores. Posteriormente vários outros escândalos se sucederam, enquanto as bolsas de valores, não somente as americanas, como as do mundo inteiro, passaram a registrar índices de queda vertiginosa. Na matéria a que me refiro acima, o autor registrava que o Sr. Dornbusch já se mostrava “preocupado com os escândalos do capitalismo e a dificuldade de punir empresários dedicados à delinqüência.”  Mais recentemente, todos assistimos pela TV a cenas de dois empresários, de uma daquelas empresas, sendo presos e algemados. O Congresso americano passou a adotar medidas rigorosas, todavia resta saber se apenas para dar um “exemplo de austeridade” momentâneo e acalmar os mercados de capitais, ou se essas ações, mais rigorosas, vão continuar efetivamente. Tiveram também o cuidado de não tomar as novas medidas de austeridade com efeitos retroativos. Sabemos bem o por que. O professor Dornbusch sustentava que: “o socialismo ruiu, dez anos atrás, porque ficou desacreditado perante as pessoas que viviam sob seu regime. Agora o capitalismo virou alvo de críticas severas, e seus críticos têm provas contundentes de que tinham razão em enxergá-lo como um sistema que funciona a favor dos empresários, dos executivos e de seus cupinchas”.   A reportagem realçava que, em sua versão contemporânea, o capitalismo, pela visão de Dornbusch, “construiu um ambiente de impunidade tal que corre o risco de criar o maior perigo moral de todos: um mundo em que os crimes dos empresários não teriam castigo”.   Percebe-se claramente que ele tinha total razão, até porque, prender e julgar alguns empresários agora, sabe-se lá quantos, não significa fazer justiça completa, e quiçá, nem duradoura. Igualmente não redime o capitalismo frente  ao desemprego que as atitudes daqueles empresários vêm causando, nem os imensos prejuízos à poupança do povo americano que, por hábito cultural, estava acostumado, e bem acostumado, a  comprar ações de suas empresas, por confiar cegamente no sistema.   Justiça também não está sendo feita, quando procuram deixar impunes aqueles que, em passado não muito distante, cometeram atos idênticos nas empresas que dirigiam. Esta “justiça”, agora apressada em acalmar os mercados de capitais, em princípio parece mesmo querer confirmar o sentido de ser cega, embora esta “cegueira” se volte na direção contrária da legítima austeridade, do autêntico e igual direito a alcançar a todos, o que culminaria numa completa e verdadeira Justiça.   Enquanto vimos, de forma meio espalhafatosa, dois empresários saírem algemados do Tribunal, não podemos esquecer de que quem agiu de forma desonesta, comprando e revendendo ações, até de fundos de pensões de empresas estatais, fazendo suas manobras, como diz a revista, “nas sombras das bolsas de valores”, utilizando-se de informações privilegiadas, foram dezenas, ou centenas de pessoas. Atuaram por vários anos, conforme relatórios e investigações oficiais citadas naquela reportagem.   Nem preciso entrar em detalhes pois tem sido farto o noticiário com denúncias envolvendo não apenas “pessoas próximas ao poder”, mas também algumas que ocupam o próprio. Aí, quando a investigação se aproxima de pessoas com tal influência, tem sido notória a dificuldade para apurarem alguma coisa. Sem apuração nem se pode pensar em punição, fica mesmo inimaginável. Isto leva naturalmente a uma situação de certa impunidade. A justiça talvez funcione, mas só para uns poucos.   Lembrem-se de que há poucos dias os noticiários internacionais davam conta de que o próprio Congresso americano, (democratas e republicanos) solicitava ao Sr. Bush que liberasse determinados documentos da época em que dirigiu a Harken, a fim de que se apurasse a verdade sobre as denúncias que estavam a sair na imprensa americana. Como quem não deve não teme (?!) ele, até agora, tem se recusado sistematicamente a liberá-los. Fica apenas a palavra do presidente: “eu não fiz nada de errado.”   A matéria da Revista Época afirma ainda não ser de hoje que existem sérios indícios de “tráfico de informações privilegiadas”. E segue relatando: “Já em 1994, informa a leitura de um documento da Comissão de Valores Mobiliários, a CVM, era possível falar em negócios que ‘apresentavam características de terem sido realizados em grupo e com conhecimento prévio do comportamento dos fundos de pensão’”.   Outras reportagens que li sobre o assunto, e que tenho guardadas em meus arquivos, chegam a comparar o “modus operandis” desses senhores capitalistas, envolvidos em escândalos de fraudes, protegidos, ora pela proximidade com o poder, ora pelo “facilitário” de órgãos que lhes abriam informações confidenciais, com o que acontecia na extinta União Soviética, no tempo do comunismo russo.   Parece que o atual capitalismo tem se esmerado em copiar, entre outras coisas, uma das faces que criticava severamente no antigo regime soviético. Temos que dar razão ao falecido professor Dornbusch. Note-se que os escândalos agora tão divulgados, já vinham sendo apontados, por órgãos responsáveis em o fazer, há uns oito anos.   Entretanto, nenhuma providência foi adotada em tempo de evitar que se chegasse ao que agora aniquila a poupança de tantos, causa desemprego, e leva ao descrédito o sistema antes considerado inabalável. E se aquele quadro continuar por mais algum tempo, como diz a revista Época, “não se corre o risco de vermos confirmado o que o referido professor chamou de o “maior perigo moral”?   Após a queda do muro de Berlim, em 1989, o capitalismo, sozinho, não soube ou não se preocupou em assumir um papel de liderança mundial, ampla e irrestrita, que lhe cabia. Comemorou a derrota do comunismo e parece que se satisfez apenas com isso. Não voltou seus olhos nem seus esforços para reduzir os abismos de diferenças sociais, para minorar a fome, a miséria, as doenças, que afligem a bilhões de seres humanos. O capitalismo, livre do comunismo, mostrou-se ainda mais egoísta, mais egocêntrico.   Desprezou interesses alheios carentes de tudo. Pôs-se no centro do mundo, mas a exibir-se faustosamente e a continuar acumulando riquezas. As eventuais preocupações do Grupo dos Sete, hoje, dos Oito, servem mais para uma exibição de líderes que se jactam de oferecer ajuda aos países mais necessitados, nela omitindo a face de uma hipocrisia que beira o desumano, o desnaturado. Com migalhas aplacam suas consciências, mitigam eventuais remorsos, ou, o que é mais grave, “põem suas consciências em almoeda”, isto é, oferecem-na a quem der mais, em retorno.   A sede de poder e de domínio do capitalismo mais forte, mais poderoso, é tamanha, que pretende claramente continuar se apoiando num pretexto, até hoje mal explicado, para fincar raízes mais duradouras e profundas em terras distantes, tanto na Ásia, quanto na Região do Golfo. Tenta impor as suas regras, gestões sob seu controle, ainda que à força, para com o tempo apoderar-se de riquezas que hoje pertencem aos povos das referidas regiões. Esta é a outra face que mostra o capitalismo atual como um “perigo moral”, inescrupuloso e cruento. Pouco se  importa com as vidas que se percam. Estão acostumados a chorar apenas pelas suas próprias vítimas.   A sede desse poder tentará, e já dá sinais disso, vir saciar-se também com a nossa Amazônia. Insinuações maldosas visam a fazer o mundo crer sermos incompetentes para administrar e preservar o que é nosso, e que, com indisfarçáveis interesses de conquista, afirmam ser um “patrimônio da humanidade”. Só não explicam como eles, que integram o capitalismo poderoso, agressor e eterno colonizador, que querem criticar-nos e dar-nos “lições”,  foram tão incompetentes para impedir a devastação de suas próprias florestas, o que ainda hoje ocorre com o que lhes resta.   Há 14 anos derrubaram o “muro da vergonha” e durante este longo período, o capitalismo construiu e/ou ajudou a levantar muitos outros mais, pelo mundo afora. A História nos conta exemplos de vários impérios que, após um período de dominação, pompa, ostentação e fausto tiveram o seu inevitável declínio, derrocada e ruína.   Podemos estar na ante-sala de um novo capítulo da História, quando vemos a incompetência arrogante, agressora e impiedosa, tentar colonizar a humanidade como um todo. Tal ambição pode ter um preço muito caro. O futuro poderá contar a derrocada de mais um império, cuja decadência material e moral já está inscrita no presente a que se referiu o professor  Dornbusch.           

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