DOIS AMIGOS

    31 de março de 1964: através da vidraça da janela da sala onde assistia a uma aula, no colégio em Friburgo, vi minha irmã indicando que precisava falar comigo com urgência. No pátio, lívida, fez a comunicação: – João Goulart deu o golpe. Vai correr sangue. Vamos embora!”A informação contradizia o ar que se respirava.   As observações de que a noite estava muito mais negra e as ruas excessivamente solitárias fizeram com que a minha “ficha caísse”: –  “Jango não deu, sofreu o golpe". Em casa, confirmei a suspeita. Eu era participante de uma turma de amigos das redondezas, formada desde a época da infância e o único intensamente ligado em política. Lia e ouvia tudo sobre o assunto, aí incluídas as conversas do meu pai com os seus amigos, ocasião em que o assunto só começava por futebol. Logo depois, varavam a noite em política.        Além de mim, apenas dois outros colegas se interessavam, de longe, pelo assunto. Lá uma vez ou outra conversávamos a respeito. Influenciados pelos pais, eles acreditavam, sem embasamento ou convicção, nas boas intenções da recém-instalada “revolução”. Desde o início e com maior intensidade em 1965, tentei alertar-lhes para a truculência de um movimento que “regulamentava”, através da força, a violência das suas atitudes. Contudo, eles se recusavam a acreditar.        Nesse ano, três acontecimentos foram sintomáticos.          Em uma noite, esses dois amigos me acompanharam até colégio. Fazíamos “hora” na entrada, quando vimos chegar, de braços dados, o diretor e a sua esposa. “Cantando pneus”, surgiu, no início da rua, um jipe recheado de policiais. Separaram, com brutalidade, o casal. Algemaram o homem e jogaram-no dentro do jipe. Meus dois amigos não me encararam, apenas se entreolharam em silêncio. O diretor, homem estimado e reconhecido na cidade e que pertencia a um partido de esquerda, foi preso e destituído do cargo, sob a alegação de ser um perigoso “comunista comedor de criancinha”. Sob nossas vistas, a caminhonete do DOPS, parou em frente ao sindicato dos metalúrgicos. Os policiais invadiram o prédio e quebraram tudo à procura do presidente, que não se encontrava. Após alguns minutos, calmamente, surgiu o presidente do sindicato. Foi preso e algemado como um perigoso “agente vermelho”. Ele não fazia parte do nosso convívio, mas, sabíamos que era um correto e pacato cidadão. Quem sabe, apolítico? Novamente, os dois não tiveram condições de me encarar.          Salão de sinuca no centro de Friburgo. Um desses meus amigos ganhou uma disputa a dinheiro de um policial do Dops de revólver à mostra. O sujeito não se conformou. A confusão se estabeleceu. O policial empunhando a arma, acintosamente, ameaçou a todos. Sem outro jeito, fomos embora. O meu amigo desabafou: – “Depois dessa maldita revolução, qualquer policial de merda virou autoridade!”. Aprovados no vestibular no início de 1966, os dois amigos mudaram-se para Niterói.

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