O CÓDIGO DA VINCI DAS VANS

            Apesar de não ser extrovertido a ponto de merecer ser aceito como membro das comunidades fechadas que dominam o ambiente interno de algumas conduções, sou tolerado com um dos passageiros que possuem vaga certa numa van para vir trabalhar.         Como não durmo em "viagens", uso o tempo para ler, mesmo ciente de que o predomínio feminino nesse tipo de condução é fator impeditivo a qualquer tipo de concentração.         Ano passado, adivinhando a minha intenção de ler o livro o “Código da Vinci” e com o intuito de melhor organizar os egos, o motorista sugeriu uma “dança das cadeiras” em que eu, sem direito a voto, fui parar no banco da frente, na cabine, entre ele e uma loirinha bonita.          A dificuldade de iniciar a leitura começou quando a minha companheira – quem sabe pela sisudez – me elegeu como consultor sentimental e passou a se confessar diariamente no meu ouvido direito. Paralelamente, do lado esquerdo, surgiam vários sons ao mesmo tempo: o do rádio do veículo e os dos “viva voz” do celular e do Nextel que o condutor mantém em cada uma das mãos. O inacreditável é que ele às vezes utiliza os dois aparelhos ao mesmo tempo. Não me perguntem se nessas horas ele dirige com os joelhos!? Fechava os olhos para não ser acusado de cumplicidade. Seis meses nessa barulheira me levaram até a página 17.               Mas, aprendi tudo sobre trânsito: quando o piloto informa que está tudo “LC”, quer dizer que o trajeto encontra-se Limpo e Cristalino. “Segundo andar” significa viaduto e “Angélico(a)” é passageiro(a) que vai de táxi. Também distingo os motoristas pelos apelidos: sei quem são o Esmagado, o Buiú e dois fortíssimos candidatos à líder de classe: o Maldito e o Bisonho!        Meu sonho de consumo eram os dois últimos assentos do salão do veículo onde os passageiros geralmente viajam dormindo. Contudo, a vaga que surgiu foi na “muvuca”: aqueles dois bancos em que os lugares são um de frente para o outro e junto à porta, onde passei a acumular as funções de porteiro e cobrador. Mas, saí ganhando: meus conhecimentos foram enriquecidos com as notícias do "Extra" e os comentários sobre vidas de artistas.          Isso sem contar que, na condição de “bendito fruto” de cinco mulheres, recebi por osmose cursos intensivos de filhos, empregadas, doenças, dietas, cabelos, cirurgias e até de como ser suficientemente convincente para afirmar que prefiro Irajá à Tijuca. Seis meses depois, consegui avançar apenas até a página 58 do best-seller.        No início do mês vislumbrei uma vaga no último banco. Imaginei que, ali sim, conseguiria ler o livro. Ledo engano! Hoje, segunda-feira, os vidros do veículo amanheceram forrados com Insulfilme. “Para ficar em clima de escurinho do cinema”, justificou o dono do veículo.         A sorte é que existem outras opções para decifrar os enigmas contidos no “Código da Vinci”: assistir ao filme ou trocar de condução.

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