PRAZERES ADORMECIDOS

    Absorto, só reparei nos passageiros à minha volta quando o ônibus aproximou-se do ponto final. Eram semblantes cansados, sonolentos, sofridos. Chamou-me a atenção, a alegria de um cidadão, em contraste com os demais, assobiando uma música conhecida. E me chocou a constatação de que faz tempo que não canto ou assovio nenhuma canção. Foi aí que desfilaram pela minha mente imagens de vários outros prazeres – todos simples – dos quais, confesso, nem lembrava que um dia já fizeram parte da minha rotina:Cantar no chuveiro! Solteiro e numa fase de paixão não correspondida pela vizinha da direita de casa, lembro que enquanto tomava banho e a água caia “pelando” no meu corpo, tentava chamar-lhe a atenção, me esgoelando em tentar imitar Roberto Carlos cantando: “As flores do jardim da nossa casa / morreram todas com saudade de você… Ôuh! Tanranran. Ôuh! .” . Infelizmente, descobri tarde demais que os elogios à seleção musical e ao meu “vozeirão – segredados à minha mãe pela vizinha da esquerda – tão bonita e interessante quanto a outra – significavam sinal verde para um “caliente” namoro. Tomar banho de chuva (e ainda beber da água)! Nossa, que coisa boa! Principalmente, se fosse depois do futebol de rua, suando “em bicas”, morto de cansaço e depois do sol de “maçarico”. Melhor ainda, era reiniciar a “jogo”, sujeitos a escorregões, tombos, fraturas e demorados/dolorosos puxões de orelha da mãe zangada. Café com leite, pão e manteiga em tarde de inverno! Mesmo sendo impossível exigir-se atualmente a presença de leite natural, esse é o tipo do prazer que possui pré-requisitos: o pão tem que ser da “hora”, a manteiga da roça e café fresco feito em coador de pano. Nada de cafeteira elétrica! A mesa deve estar decorada com toalha quadriculada azul e branca, xícaras da mesma cor e talheres brilhando. E o ápice desse requinte é “afogar” o pão emplastado de manteiga no café com leite e comer o resultado de colher.Passear pela Rio Branco chupando sorvete ou comendo milho cozido! Mesmo que o limite fosse apenas olhar as vitrines “chiquérrimas”, apreciar a beleza e a elegância das mulheres (qualidades comuns encontradas prioritariamente nas que habitam a avenida entre a Rua São José e a Av. Beira Mar) e freqüentar os prédios históricos, esse foi um prazer que o caos e a violência urbana tornou proibitivo. Falta-me coragem para o passeio. “Bebemorar” com os amigos.  Ex-funcionários, da antiga REMEC, nos reuníamos num almoço que era agendado de forma surreal: toda primeira terça do mês, em frente à pilastra do meio do “730”, as treze e vinte e dois. E, na plenitude do verão, lá íamos nós para um calorento “pé-sujo” na Praça Mauá. Encharcando o chão de suor, almoçávamos arroz, couve e feijão com gosto de carne seca, ao som de muitas risadas, sob a inspiração de “rios de cerveja” e sujeitos a intermináveis discussões sobre sexo dos anjos. Para contornar o inevitável sono no regresso ao trabalho, a solução era alegar uma suposta (ou verdadeira) dor de cabeça e pedir para “descansar” trancado no banheiro.Talharim com carne assada dos almoços de domingo! Antes da conversa, um aviso: tinha que ser feito pela nossa mãe! O cheiro que dominava a casa após o impacto do arroz cru sendo jogado no óleo quente da panela, para ser refogado com o alho, era a prenúncio do quanto iria estar saborosa a comida que só seria servida bem tarde, para não haver necessidade de jantar. Na mesa posta, longe dos pais, podia-se discutir de boca cheia. A tapona ficava na promessa. O figo em calda na sobremesa antecipava os inúmeros cafés, a leitura dos jornais, as conversas, o futebol no rádio à tarde e o ajantarado. Ao contrário dos atuais churrascos enfumaçados, os domingos eram perfeitos.  Cigarros depois dos cafés e das “comidas”: Não tem preço! Sem comentários! Desviando um pouco do eixo do texto, mas ficando nos “prazeres”, há quem diga que, NÃO apreciar doce de coco, chocolate (“Prestígio” é covardia!), bolinho de bacalhau, café de botequim, chopes (vários), rabanada do outro dia, pastel de feira com caldo cana, suco de manga e sorvetes não é uma questão de gosto, mas, sim, de mau gosto.   A essas pessoas, alerto a não fazer como eu que, buscando o equilíbrio entre a saúde e a inveja, classifico ao que devo evitar como sendo “ilegal, imoral ou que engorda”. E pra’ finalizar: Aí em cima estão alguns dos meus prazeres. Listem os seus e os mantenham acordados. Porque, longe deles (falo de cadeira), a vida fica chata que dói…

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