A Constituição e as carreiras de Estado

    PEDRO DELARUE
    Presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco Nacional) e ex-presidente do Fórum Nacional das Carreiras Típicas de Estado (Fonacate)

    Em 5 de outubro passado, a Constituição completou um quarto de século. Para um país de modesta tradição democrática como o Brasil — lembremos que, no século 20, vivemos largos períodos sob regimes excepcionais, tais como o militar e o de Getúlio Vargas, além do estado de sítio do período de Arthur Bernardes —, trata-se de um feito a ser exaltado sempre. Mas esses 25 anos serviram também para meditarmos sobre a Carta de que dispomos, cada vez mais o retrato de uma época que ansiava por estabelecer definitivamente a democracia, fechando espaço para aventuras obscurantistas.

    Só que retratos envelhecem, ressaltam falhas técnicas, esmaecem. O que serviu mais de duas décadas atrás muitas vezes não é aplicável agora. A Constituição Cidadã foi, sobretudo, voluntarista. Hoje, há quem a considere genérica demais, ampla em excesso. Outros atribuem às não regulamentações o maior pecado, pois muito se deixou para ser firmado por meio de lei — e vários artigos e dispositivos ainda estão sem o necessário fechamento.

    Um exemplo disso é a indefinição das carreiras típicas de Estado. Parece somente uma terminologia, mas não é — e também não se esgota na rasa definição de ser uma função sem paralelo na iniciativa privada. É fundamental formatar tais atribuições e balizar aqueles que nelas se inserem.

    Observemos o caso dos auditores fiscais da Receita Federal. Apesar dos séculos de diferença e da transformação da natureza da função — hoje certamente bem mais complexa —, trata-se de profissional que descende diretamente do “tax collector”, função desenhada na Magna Carta de 1215, pelo rei João Sem Terra, na Inglaterra. Na primeira Constituição escrita de que se tem notícia, o coletor de impostos era apresentado aos aldeões como representante do rei, então a personificação do Estado. Os cidadãos tornavam-se, dessa maneira, contribuintes. Só que, no Brasil, estamos muitos séculos atrasados.
    Tramita no Congresso o Projeto de Lei nº 3.351/2012, de autoria do deputado João Dado (PDT-SP), cuja relatoria está a cargo de Roberto Policarpo (PT-DF), que pretende definir a carreira típica de Estado. Contra o PL, conspiram duas forças, uma natural e outra artificial: a antipatia do Palácio do Planalto, pois considera que haverá aumento no custeio, e nossa palavrosa tradição jurídica e legislativa, cujas minúcias significam complicações e distorções.

    A expressão carreira típica de Estado vem tomando a forma de imenso guarda-sol. Não é isso que queremos. O entendimento dos auditores fiscais, representados nas discussões pelo Sindifisco Nacional, é que o ponto principal da matéria seja resguardar tal profissional das pressões de governo. Uma barreira de contenção é fundamental para que a sociedade esteja protegida de ações estranhas, exercidas pelos passageiros do poder.
    Principalmente se considerarmos que, na história do Brasil, governos trazem interesses particulares para o centro das decisões e os colocam na conta do Estado, como se fossem uma grande vantagem para o cidadão.

    Para endossar o que estou dizendo, no dia 11 passado, os auditores fiscais foram surpreendidos com a decisão do subsecretário de Fiscalização da Receita Federal, Caio Marcos Cândido, de deixar o cargo. Ele se disse insatisfeito com o que acusou serem “ingerências externas”, que representariam “posições menos técnicas e divorciadas do melhor interesse”.

    A reação de Caio foi à reabertura do Refis da crise, a concessão, pelo governo federal, de condições especiais para que multinacionais brasileiras saldem dívidas tributárias. O gesto do ex-subsecretário explicitou que interesses políticos têm ultrapassado decisões técnicas, que visam preservar o Estado e a integridade da arrecadação. Ou seja, o quadro técnico da Receita foi escanteado. O cidadão contribuinte ficou sem defesa contra a decisão oportunista, casuística, que gera imensos prejuízos. Quem pagará a conta do desmando? Todos nós, é claro.

    O grande mérito da Carta de 1988 é que, pela primeira vez, foi realmente cidadã, como bradou Ulysses Guimarães no ato da promulgação. Não é pouco, mas também não é tudo. A definição das carreiras típicas de Estado seria imenso passo para aperfeiçoá-la, pois, ao dar rosto àqueles que formam tal grupo, conecta a Constituição definitivamente às reivindicações da sociedade.

     

    Fonte: Correio Braziliense

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