Autoridades eleitas pelo povo, mais do que quem é nomeado presidente do Banco CENTRAL, deveriam ter a palavra final na formulação da política monetária. O Banco CENTRAL tem autonomia operacional, e achamos que a economia – e a questão monetária é parte da economia como um todo – precisa ser dirigida por aqueles que são eleitos. Eu sou contra a autonomia formal do Banco CENTRAL . Esta declaração, feita em maio último por Rui Falcão, presidente do PT, é representativa do pensamento de políticos e economistas de esquerda sobre o tema.
Tem razão Rui Falcão ao afirmar que os tecnocratas do BC não têm delegação popular para decidir qual deve ser a taxa de inflação do país. A taxa de inflação equivale a uma alíquota de tributação sobre a moeda mantida no bolso pelos cidadãos. Numa sociedade democrática, questões envolvendo tributação devem ser decididas pelos representantes eleitos. A decisão sobre qual é a meta de inflação a ser atingida, bem como a faixa de tolerância em torno dela, é uma decisão política. Como tal, só pode ser tomada por quem teve voto. A questão da independência do BC se coloca somente após essa decisão: quem, melhor que os tecnocratas de um BC independente, poderá transformar em realidade o cumprimento daquela meta democraticamente definida pelos representantes do povo?
Se a diretoria de um BC independente recebesse a missão de cumprir uma meta de inflação definida por representantes eleitos pelo povo, ela teria enorme força política para implantá-la. Diante de pressões de curto prazo para baixar os juros, ela teria que receber daqueles mesmos eleitos pelo povo uma categórica contra-ordem. Neste caso, os jornais apresentariam suas manchetes: Presidente determina ao BC que desista de combater a inflação . Nas eleições seguintes, os eleitores decidiriam, democraticamente, pela substituição, ou não, de seus representantes.
Os mesmos críticos da independência do BC defendem a ilimitada autonomia hoje concedida ao BNDES
O que se ganha com a independência do BC é a blindagem de sua diretoria contra pressões políticas, algo que se observou recentemente no Brasil, tendo levado a uma política monetária tolerante em relação à inflação. Hoje, diante da frequente interferência do Executivo, os agentes econômicos esperam o pior, o que estimula remarcações preventivas de preços, dificultando a tarefa da autoridade monetária. Em essência, a autonomia formal do BC aqui defendida seria análoga àquela que rege as agências reguladoras, cuja atuação é definida pelas leis complementares que as criaram.
Curiosamente, os mesmos críticos da independência do Banco CENTRAL defendem a ilimitada autonomia hoje concedida ao BNDES. Desde a crise dos subprime em 2008, o Tesouro transferiu ao Banco mais de R$ 300 bilhões. Trata-se de algo próximo a um orçamento paralelo, pois a destinação dos recursos segue prioridades definidas pelo próprio BNDES, além do fato de a magnitude do subsídio e sua distribuição não serem divulgados devido ao sigilo bancário. O poder Legislativo limita-se a aprovar os repasses do Tesouro ao BNDES, que os utiliza segundo prioridades e políticas decididas internamente sem muita discussão e/ou prestação de contas à sociedade. Esta liberdade de ação é muito superior àquela concedida aos bancos centrais independentes ao redor do mundo.
A opacidade quanto aos critérios de alocação definidos pelo próprio BNDES salta aos olhos. Porque o Banco resolveu financiar de forma tão decidida o setor de carnes, por exemplo, concentrando seus financiamentos em poucas empresas? Não se conhece qualquer documento mais profundo sobre esta diretriz, muito menos alguma explicação mais embasada para os R$ 250 milhões investidos em um frigorífico que faliu apenas três meses depois de receber estes recursos. Não se conhecem avaliações rigorosas do conjunto de políticas do Banco. Dado o diferencial de 6% ao ano entre a taxa de captação do Tesouro – Selic, ou NTNB – e a TJLP, pode-se estimar em pelo menos R$ 20 bilhões anuais o volume de subsídios distribuídos pelo Banco, sem escrutínio adequado.
A taxa de investimento do país pouco mudou durante a fase de crescimento dos citados aportes do Tesouro. Em princípio, é possível que um estudo rigoroso com dados claros e acessíveis a todos os interessados possa convencer analistas econômicos de que, na ausência daqueles empréstimos, a situação do investimento estaria ainda pior. Entretanto, em que pese a competência de seu corpo técnico, o Banconão produziu qualquer avaliação que vá além de generalidades – criamos X empregos, financiamos Y empresas . Não há números, simulações ou estimativas rigorosas do retorno líquido dos financiamentos do Banco, nem dos usos alternativos para aqueles fundos.
Combater a independência do Banco CENTRAL, e simultaneamente apoiar a ilimitada independência do BNDES, refletem uma visão de mundo. Governantes gostam de exercer discricionariamente o poder, embora em geral regras claras e estáveis gerem melhores resultados. A maior liberdade de ação nos dois casos permite ao governo, no curto prazo, implementar as políticas que julga mais apropriadas. Entretanto, a inflação acima da meta, mesmo com controle de importantes preços administrados, e o baixo crescimento, mesmo com a explosão do crédito público, mostram que no médio e longo prazo este excesso de flexibilidade nas mãos do governo central não tem funcionado.
Pedro Cavalcanti Ferreira e Renato Fragelli Cardoso são professores da Escola de Pós-graduação em Economia (EPGE-FGV) e escrevem mensalmente às quartas-feiras.
Fonte: Valor Econômico