A indevida diferenciação entre ativos e inativos portadores de moléstia grave para fins de isenção do imposto de renda

    O objetivo do presente estudo é, basicamente, examinar se a pessoa física que exerce atividade laboral, portadora de doença grave, pode ser beneficiada com a isenção do imposto de renda, nos termos do art. 6º, inciso XIV, da lei 7.713/88, com as alterações introduzidas pela lei 11.052/04.

    A interpretação, qualquer que seja o método hermenêutico utilizado, tem por objetivo definir o sentido e esclarecer o alcance de determinado preceito inscrito no ordenamento positivo do Estado, não se confundindo, por isso mesmo, com o ato estatal de produção normativa.

    Daí a procedente advertência que Geraldo Ataliba (ATALIBA, 1990, p. 87) faz em lapidar magistério, no sentido de que:

    “Em primeiro lugar, o jurista sabe que a eventual intenção do legislador nada vale (ou não vale nada) para a interpretação jurídica. A Constituição não é o que os constituintes quiseram fazer; é muito mais que isso: é o que eles fizeram. A lei é mais sábia que o legislador. Como pauta objetiva de comportamento, a lei é o que nela está escrito (e a Constituição é lei, a lei das leis, a lei máxima e suprema). Se um grupo maior ou menor de legisladores quis isto ou aquilo, é irrelevante, para fins de interpretação. Importa somente o que foi efetivamente feito pela maioria e que se traduziu na redação final do texto, entendido sistematicamente (no seu conjunto, como um todo solidário e incindível). (…) O que o jurista investiga é só a vontade da lei (…)”.

    Significa dizer, em outras palavras, parafraseando o Ministro Celso de Mello, quando ainda ocupava assento no Supremo Tribunal Federal, que a lei vale por aquilo que nela se contém e que decorre, objetivamente, do discurso normativo nela consubstanciado, e não pelo que, no texto legal, pretendeu incluir o legislador, pois, em havendo divórcio entre o que estabelece o diploma legislativo (“mens legis”) e o que neste buscava instituir o seu autor (“mens legislatoris”), deve prevalecer a vontade objetiva da lei, perdendo em relevo, sob tal perspectiva, a indagação histórica em torno da intenção pessoal do legislador.

    Em igual direção, do Excelso Pretório, colhe-se a lição do Ministros Luís Roberto Barroso, ministrada no julgamento da ADI 4.439:

    “(…) É preciso advertir, neste ponto, que a “mens legislatoris” representa fator secundário no processo hermenêutico, pois, neste, o que se mostra relevante é a indagação em torno da “mens legis”, vale dizer, a definição exegética do sentido que resulta, objetivamente, do texto da lei (ou da Constituição). (…) Em suma: a lei vale por aquilo que nela se contém e que decorre, objetivamente, do discurso normativo nela consubstanciado, e não pelo que, no texto legal, pretendeu incluir o legislador, pois, em havendo divórcio entre o que estabelece o diploma legislativo (“mens legis”) e o que neste buscava instituir o seu autor (“mens legislatoris”), deve prevalecer a vontade objetiva da lei, perdendo em relevo, sob tal perspectiva, a indagação histórica em torno da intenção pessoal do legislador (…).”

    Essa, de igual modo, é a orientação que tem sido sufragada pelo Superior Tribunal de Justiça:

    “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS (…) 1. A interpretação da mens legis, isto é, o que é objetivamente a norma, precede a interpretação da mens legislatoris, que é a intenção do legislador. Julgados do STF. 2. Havendo divórcio entre o que estabelece o diploma legislativo (“mens legis”) e o que neste buscava instituir o seu autor (“mens legislatoris”), deve prevalecer a vontade objetiva da lei, perdendo em relevo, sob tal perspectiva, a indagação histórica em torno da intenção pessoal do legislador.”

    Transpondo tais orientações para o exame aqui realizado observa-se, desde já, que a isenção sobre rendimentos do portador de moléstia grave é do tipo geral, deferida, “ex vi legis”, a toda situação em que caracterizadas as patologias da lei  7.713/88 (BRASIL, 1988), cujo rol, aliás, vem sendo ampliado de tempos em tempos, e que, nos idos de 1988 (há ?  de século, portanto), geravam situações quase sempre compulsórias de invalidez/incapacidade profissional.

    Deveras, ao tempo da edição da lei 7.713/88 (BRASIL, 1988), a transposição para a inatividade era a natural consequência usual para os males nela elencados, dada a pouca opção de tratamento eficaz. No entanto, com os avanços da medicina abre-se espaço para novas situações, nas quais tais contribuintes, haja vista evidentes progressos científicos, conseguem manter-se em pleno potencial de atividade profissional.

    Normas jurídicas nascem para pacificar o tecido social, não para causar sensação de abandono. Aludido quadro exige o mesmo tratamento jurídico, pois a doença grave (com as consequentes perda ou redução da capacidade tributária) é a nota da isenção sobre os rendimentos (da inatividade e da atividade); não há sentido lógico-jurídico (nem ético) em afastar o tributo sobre proventos e, entretanto, mantê-lo sobre o salário/remuneração.

    Ora, a “mens legis” da lei 7.713/88 (BRASIL, 1988) é ajudar a pessoa portadora de moléstia grave a ter maiores condições financeiras para arcar com os custos de seus tratamentos. A ideia é que a isenção do Imposto de Renda vai trazer maior poder financeiro para a pessoa, o que é muito benéfico para pagar os tratamentos em prol da cura.

    De fato, como se pode depreender da exposição de motivos do projeto de lei, a intenção do legislador ao isentar aqueles acometidos por doença grave foi suavizar o aflição e a despesa suportadas por tais indivíduos em decorrência do tratamento que necessitam, em conformidade com os ideais da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), publicada no mesmo ano da lei 7.713 (BRASIL, 1998), não havendo motivo para diferenciar os ativos dos inativos.

    Nesse sentido, inclusive, foi a fala Ministro Humberto Martins, do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.507.320/RS, no bojo do qual S. Excia., com a percuciência que lhe é inerente, obtemperou que:

    “a isenção fiscal concedida aos portadores de doença grave tem por objetivo abrandar o impacto da carga tributária sobre a renda necessária à sua subsistência e sobre os custos inerentes ao tratamento da doença, legitimando um ‘padrão de vida’ o mais digno possível diante do estado de enfermidade”.

    O princípio da isonomia, expressamente citado na exposição de motivos, demonstra que a isenção deve alcançar a todos, até porque, conforme delineado no respectivo texto, “o princípio da isonomia fiscal tem o seu destaque ao ser enunciada a vedação do tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos.”

    Essa é a finalidade que deve ser observada pelo intérprete da norma, até mesmo em razão do que dispõe o art. 5º da lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (BRASIL, 1942):

    “Art. 5º.  Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”

    Deveras, as normas jurídicas não podem conduzir a absurdos de ordem prática, tanto mais quando há duas leituras possíveis da isenção, uma mais evidente/exata e outra fundada em interpretação restritiva (não exata). Bem por isso deve ser reconhecida que, no âmbito de sua incidência, está incluída a concessão do benefício fiscal aos trabalhadores com doença grave que permanecem em atividade.

    A diferenciação entre trabalhadores ativos e inativos (aposentados) que sejam portadores das mesmas moléstias graves fere os princípios da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da igualdade, previstos, respectivamente, no art. 1º, III e IV, primeira figura, e art. 5º, “caput”, todos da Constituição Federal (BRASIL, 1988), além de desrespeitar a lei 13.146/15 (BRASIL, 2015), que expõe normas de proteção às pessoas com deficiência, proteção que deve ser vista de modo amplo para abranger também aqueles acometidos pelas doenças graves descritas na lei 7.713/88 (BRASIL, 1988).

    Mais do que os preceitos constitucionais que são maculados na não extensão da isenção aos trabalhadores em atividade, tal diferenciação não está mais apoiada em fatores lógicos e objetivos que justifiquem o tratamento normativo diferenciado com relação aos rendimentos auferidos por pessoas que sofrem das mesmas doenças graves, mas que ainda permanecem exercendo atividade laboral.

    Isso porque, como já dito acima, a aposentação era consequência impositiva àqueles que possuíam tais doenças graves, naquele contexto de quase quatro décadas atrás. Logo, a isenção aos inativos representava um meio de compensar as pessoas de sua perda ou redução da capacidade contributiva, além de garantir recursos financeiros para fazer frente às despesas com tratamento médico.

    Porém, não é demasiado relembrar (mesmo correndo-se o risco de se tornar repetitivo), com o avanço da medicina, ciência e tecnologia, nos dias de hoje, ainda que as pessoas venham a ser diagnosticadas com alguma das doenças graves da lei 7.713/88 (BRASIL, 1988), conseguem permanecer laborando concomitantemente ao tratamento.

    Não significa dizer, todavia, que os enfermos ativos não passem pelas mesmas dificuldades de tratamento e financeiras que aqueles que se aposentam. Essa indevida diferenciação fere de morte o princípio do valor social do trabalho, pois penaliza a pessoa pelo simples fato de conseguir permanecer trabalhando, mesmo doente.

    Chamando a atenção para esses aspectos, o Desembargador Federal Luciano Tolentino, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no julgamento dos Embargos Infringentes 0009540-86.2009.4.01.3300, classificou como uma monstruosidade que um contribuinte possa ser “sadio para fins de rendimentos ativos” e, simultaneamente, “doente quanto a proventos”.

    Não se deve ignorar o princípio tributário da literalidade. Contudo, tal princípio não deve ser tratado de forma rígida e absoluta quando confrontado com o intuito da lei 7.713/88 (BRASIL, 1988), dos princípios constitucionais da igualdade e dos valores sociais do trabalho, bem como a própria evolução da medicina, que permite atualmente que as pessoas que sofrem de alguma das doenças graves descritas no rol possam permanecer trabalhando.

    Ainda no intento de ambientar a questão, é preciso ponderar que ao tempo da edição da lei 7.713/88 (BRASIL, 1988), vigoravam o art. 43, I e II, do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966), ainda hoje inalterado, e o inciso II, do §2º, do art. 153 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), esse revogado pela EC 20/1998 (BRASIL, 1988), preceitos que induzem conclusão inarredável de que salários e proventos são, ambos, subtipos de rendimentos (e o “caput” do art. 6º da lei 7.713/88 (BRASIL, 1988) a tal expressão alude).

    A CF/88, (BRASIL, 19888) ao tratar do imposto de renda, estipula, em mesmo preceito (art. 153, inciso III), que ele é tributo que incide sobre renda e proventos de qualquer natureza, o que denota que, dada a particular aditiva e o tributo (e seus elementos) é um só, incidindo sobre salário/proventos, evidenciando que, de regra, salvas exceções inconciliáveis, ou ambos são tributáveis ou, sendo caso de isenção (por fato que a ambos os contextos se comunica), nenhum deles sofrerá tributação, sendo ambos, repita-se, rendimentos (isentos).

    O próprio CTN (BRASIL, 1966) fala, em seu artigo 43, no imposto de renda como sendo tributo incidente sobre renda e proventos, denotando que tais (incisos I e II do item) são ambos rendimentos; se, para fins de tributação, proventos e salários dão-se as mãos para, unindo-se sob o color de rendimentos, oferecerem-se à tributação, assim também serão o mesmo todo para fins de isenção.

    Sanar tal incongruência não é interpretação extensiva ou analogia, mas, sim, percepção do real alcance natural da norma e de sua sazonalidade de amplitude em função de variantes do tempo e espaço. A isenção toma, na hipótese, como elemento justificador objetivo, a patologia enumerada (com esteio na redução/perda da capacidade contributiva), para, em função dela (e somente dela), dizer isentos os rendimentos.

    Disso tudo se extrai, portanto, que, ao contrário do que decidido pelo Superior Tribunal de Justiça em precedente qualificado (Tema 1.037), não há razão jurídica plausível para se legitimar o entendimento de que o simples fato de se encontrar em atividade, exclui a pessoa física portadora de moléstia grave de ser agraciada com a isenção do imposto de renda.

    Fonte: Migalhas

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