Agora, a demonização da autonomia do BC

    Ao demonizar a autonomia do Banco CENTRAL (BC), a presidente Dilma Rousseff repete o que seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, fez com as privatizações na eleição de 2006. Naquele ano, Lula, incomodado com a necessidade de disputar o segundo turno, uma vez que esperava vencer já no primeiro, sacou da cartola o tema das privatizações ao perceber que ele ainda exercia (e exerce) um enorme fascínio no imaginário da esquerda brasileira.

     

    Lula obrigou o então candidato da oposição – Geraldo Alckmin, do PSDB – a se posicionar. O tucano mordeu a isca, saindo em defesa das estatais, em vez de mostrar os avanços que a desestatização, promovida principalmente na gestão de Fernando Henrique Cardoso, trouxera ao país.

     

    Como Lula precisava fazer um aceno à esquerda – mal saíra do desgaste do escândalo do mensalão e já enfrentava outro, o dos aloprados -, a interdição das privatizações significou uma mudança de assunto. Ademais, atraiu votos, inclusive, do adversário, afinal, Alckmin terminou o segundo turno menos votado que no primeiro.

     

    Dilma quer Aécio e Marina vistos como candidatos do capital

     

    Não se tenha dúvida: a estratégia de Lula não se resumiu a um mero recurso de campanha. A demonização virou compromisso político. No segundo mandato, o então presidente vetou qualquer possibilidade de privatização. A mais notória foi a dos aeroportos, que Dilma Rousseff, como ministra da Casa Civil, planejava fazer desde 2008, mas só pôs em prática no próprio mandato. Agora, no tema autonomia do Banco CENTRAL , é Dilma quem recorre ao expediente ardiloso da interdição do debate por meio não de ideias, mas de preconceitos e mistificações.

     

    Não mereceria comentário propaganda da campanha de reeleição da presidente, segundo a qual, conceder autonomia ao BC teria como consequência retirar comida da mesa dos brasileiros. Mas, questionada no último domingo sobre essa peça de marketing político de quinta categoria, Dilma não só a justificou, como foi além: se não tiver mandato para assegurar o máximo emprego, o BC autônomo tira, sim, a comida e a perspectiva dos brasileiros. Disse, ainda, que conceder independência à instituição seria como criar o quarto poder e entregá-lo aos bancos. O quarto poder não pode ser dos bancos.

     

    Por trás dessas imagens, estão, novamente, tolices caras à esquerda que não se atualiza e perpetua o atraso brasileiro, tais como: Banco não produz nada ; banqueiros são malvados porque são donos do capital ; capital é algo intrinsecamente ruim ; bancos centrais independentes existem para defender interesses dos bancos ; os juros são altos por culpa dos rentistas e dos bancos ; lucrar é desonesto, coisa de quem tem parte com o demônio . Não se deve subestimar o poder desses símbolos: no Brasil, até formadores de opinião bem cotados – e populistas como alguns políticos – ajudam a disseminar asneiras desse tipo.

     

    O proselitismo de Dilma tem como objetivo transformar seus dois principais adversários – Marina Silva (PSB) e Aécio Neves (PSDB) – em defensores dos bancos. Marina se tornou a candidata do Itaú por causa da participação de Neca Setúbal em sua campanha. Neca é vítima de um preconceito típico da confusão que se pretende promover no debate que deveria ser de ideias: sua trajetória como educadora é solenemente ignorada porque, afinal, ela é herdeira do Itaú , descendente, portanto, do que há de pior na economia e na sociedade brasileiras – um Banco, um capitalista ou coisa que o valha.

     

    Em entrevista, há uma semana, a presidente Dilma declarou: Eu asseguro uma coisa: esse povo da autonomia do Banco CENTRAL quer o modelo anterior, quer fazer um baita ajuste, um baita superávit, aumentar os juros pra danar, reduzir emprego e salário, porque, para eles, emprego e salário não garantem produtividade. Eu sou contra isso . O tema da autonomia do BC, em sua visão, vai muito além da discussão em torno do modelo de autoridade monetária que uma democracia como a brasileira precisa ter. O ideário encerra, pelo jeito, um conjunto mais amplo de perversões.

     

    As palavras de Dilma assustam. Depois de perder fôlego na corrida presidencial com a entrada de Marina Silva, no páreo, nos últimos dias a presidente recuperou parcela do prestígio popular perdido e voltou a ser competitiva para a disputa do segundo turno. Ao contrário de 2010, ela é, hoje, uma candidata contra o PIB e o sistema financeiro. Vestiu esse figurino sem constrangimento e pode vencer a eleição de outubro com compromissos populistas dos quais passou longe quatro anos atrás.

     

    O risco dessa estratégia é visível. Toda vez que Dilma sobe nas pesquisas, a bolsa de valores cai, o real se desvaloriza e o juro de longo prazo, que reflete melhor a expectativa da saúde das contas públicas, sobe. Ao fugir do debate real das questões econômicas, Dilma pavimenta o caminho do próprio desastre porque, se já será difícil para qualquer um promover, nos próximos anos, o ajuste necessário para corrigir os desequilíbrios criados pela política econômica desde 2011, para ela será ainda pior, uma vez que está em pé de guerra com os mercados e já não possui a mais pálida credibilidade.

     

    O Brasil ainda não está em crise. Não há risco imediato de insolvência fiscal ou externa. O que há é uma crise de expectativa, provocada por uma política econômica que, nos últimos quatro anos, desorganizou as finanças públicas, vilipendiou a autonomia do BC, tolerou inflação alta, procurou determinar os principais preços da economia, provocando forte queda na confiança de consumidores e empresários e, consequentemente, do PIB. A necessidade de ajuste é premente porque, a continuar a situação atual, uma crise logo vai avizinhar-se.

     

    Sob Dilma, o custo de corrigir o rumo será sempre maior porque os agentes não confiam mais no governo. É bem provável que, reeleita, a presidente baixe a guarda e entregue pelo menos uma parte do ajuste esperado, possivelmente na área fiscal. Mas sua retórica está esticando a corda de tal maneira que, detentora de novo mandato, ela enfrentará duas dificuldades: convencer os agentes econômicos a esquecerem a eloquência da campanha; e justificar a seu eleitorado – pelo menos, à parcela que acredita na face mais demagógica de seu discurso – o não cumprimento das promessas feitas.

     

    Cristiano Romero é editor-executivo e escreve às quartas-feiras

     

    E-mail: cristiano.romero@valor.com.br

     

    Fonte: Valor Econômico

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