As originalidades e o pragmatismo do Plano Real (Valor)

    Por Lavinia Barros de Castro

    Este ano o Plano Real completa 20 anos de lançamento. O debate em torno de sua importância tem se caracterizado por duas posições, não propriamente antagônicas. No primeiro grupo, encontram-se os que defendem ser o plano uma inestimável conquista que colocou o país nos rumos certos – rumos estes que passaram a ser gradualmente destruídos, a partir da gestão Lula. No outro grupo, encontram-se aqueles que defendem que, sim, a conquista da estabilidade foi uma vitória, mas que o Real nada teria de original. Seria mais um plano que, como diversos na América Latina, se beneficiaram da ampla liquidez dos anos 1990, utilizando o câmbio como estratégia de estabilização. Não me identifico com nenhum desses grupos.

    O Plano Real desmontou algo profundamente enraizado em nossa sociedade: a ampla indexação dos preços e contratos. Outras experiências de alta inflação da América Latina percorreram caminho diverso. Ao longo do tempo, na medida em que a inflação se acelerava, países como Argentina, Bolívia e Peru abandonaram a prática de indexação pela correção monetária e passaram a corrigir os preços pelo dólar. Se por um lado essa estratégia tornava a inflação muito mais virulenta, por outro, tornava mais fácil seu fim. Para combatê-la, bastava fixar a taxa de câmbio e assegurar que a política monetária e a fiscal fossem percebidas como sustentáveis à luz da (nova) paridade cambial. Este não era o caso brasileiro – aqui seria necessário desmontar um sofisticado sistema de indexação, construído ao longo de 30 anos.

    Além do combate à indexação ser mais complexo, o Real teve sim elementos originais. Em primeiro lugar, ao contrário dos planos heterodoxos do final dos anos 1980 e 90 (Cruzado, Bresser, Verão, Collor I e II), acreditava-se que o déficit público seria o principal problema da inflação brasileira, mas esta, ao invés de onerar, beneficiava o fisco. Neste diagnóstico, para combater a inflação, seria necessário um ajuste estrutural das contas fiscais – esta era a fase I do Plano.

    As únicas variáveis que não se comportaram como o previsto pela teoria foram os juros e o déficit público

    Em segundo lugar, em vez dos congelamentos praticados nos planos anteriores, o Real propunha uma superindexação dos preços e contratos, fazendo-os variar todos os dias, como ocorre em episódios de hiperinflação. Na fase II do Plano, o governo criou a Unidade Real de Valor (URV) a partir da variação pro rata de três índices de preços. A URV não era propriamente uma moeda, não circulava, mas todos os preços e salários deveriam ser por ela corrigidos.

    Em terceiro lugar, no dia em que a URV se tornou o real foi criado um tripé “Real-Dólar-Cruzeiro Real”, à semelhança do ocorrido na experiência alemã de 1924. Isso permitia tomar emprestada a credibilidade do dólar para o real. No momento de lançamento da moeda – fase III do Real – mais uma originalidade: aumentaram-se os juros e as exigências de compulsório. O objetivo? Evitar a “festa da estabilização”, tal qual ocorrera no Plano Cruzado.

    Mas nem tudo estava correto no diagnóstico do Real. No primeiro ano, a despeito das medidas fiscais, houve piora de cinco pontos percentuais nas contas primárias. Nos anos seguintes, a deterioração fiscal prosseguiu, agora puxada pelos juros. Passamos de um superávit operacional (primário mais conta de juros) de 1,3% do PIB, em 1994, para um déficit de 6,6%, em 1998. A dívida líquida era de 30% do PIB, em 1994, e, após a desvalorização, atingiu 44,5%, em 1999. Porém, ao contrário do que pressupunham os formuladores do Plano, a ausência do ajuste fiscal não impediu a queda da inflação ano após ano – o diagnóstico fiscalista do Plano Real, portanto, não se comprovou. A deterioração fiscal, todavia, teve seu preço. Foi um dos motivos que levou ao ataque especulativo, em 1999.

    Em consequência da âncora cambial tivemos: apreciação do câmbio, deterioração rápida das contas externas, aceleração inicial do crescimento do PIB, seguida de desaceleração. Houve aumento dos salários reais, no início do plano, e queda posterior. Tivemos nossos déficits de transações correntes financiados por fluxos de capital abundantes, durante certo tempo, que se reverteram em momentos de crise de confiança, como ocorreu em todas as experiências que mantiveram o câmbio como âncora por muitos anos. Por fim, tivemos uma crise cambial. As únicas variáveis que não se comportaram como o previsto pela teoria econômica foram os juros, que deveriam convergir para os níveis internacionais, e o déficit público, que supostamente deveria também acompanhar o ciclo econômico. Entre 1994 e 1998, em suma, o Brasil não esteve no “rumo certo”, o país teve seus fundamentos fiscais e externos deteriorados – sem falar no baixo crescimento médio.

    Não se está aqui dizendo que a âncora cambial não tenha sido importante no combate à inflação. A dúvida é se era necessário mantê-la por tanto tempo – e não se trata de sabedoria ex post, já que muitos foram seus críticos. Sim, é verdade que parte do comportamento dos juros refletiu as sucessivas crises externas (México, Ásia e Rússia), mas há de se ter em conta que o ambiente dos anos 1990 longe estava de ser desfavorável. Nos anos 1980, marcado pela escassez de financiamento para a América Latina, muito provavelmente o Plano Real, se implementado, não teria sucesso. Ademais o contágio das crises externas só foi tão severo porque nossas contas fiscais e externas eram frágeis.

    Para nós, em suma, o Real teve o mérito de desarmar um arcabouço de indexação construído desde 1964 – e isto é uma grande conquista, embora ainda hoje persistam práticas de indexação a preços passados. Houve vários elementos originais, mas sua condução foi também permeada de pragmatismo e de escolhas de política econômica, que tiveram suas consequências positivas e negativas para o país. História e complexidade caminham de mãos dadas.

    Lavinia Barros de Castro é economista do BNDES, professora de economia brasileira do Ibmec/RJ e coautora do livro “Questões Anpec”, Elsevier, 2014

     

    Fonte: Valor Econômico

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