A inflação tem assombrado os brasileiros em seu flerte com o patamar dos 8% em 2015. Se for confirmada a mediana das atuais expectativas do mercado para o IPCA, de 8,12% ao fim deste ano, conforme o último boletim Focus do Banco CENTRAL (BC), que reúne as estimativas de indicadores econômicos feitas por analistas, significará a maior variação anual do IPCA desde 2003. O número impressiona, mas dá poucas pistas sobre como as famílias em cada faixa de renda sentem e lidam com o peso da alta de preços em seus orçamentos.
Esse olhar médio esconde o impacto dos fatores microeconômicos. Ou seja, como a dinâmica das categorias de despesas afeta, na prática, os custos de cada perfil de consumo familiar.
Mesmo indicadores específicos, ajustados para medir a inflação em determinadas faixas de rendas, como o Índice de Preços ao Consumidor Classe 1 (IPC-C1), da Fundação Getúlio Vargas (FGV), que mede a variação de preços para famílias com ganhos até 2,5 salários mínimos, e o Índice do Custo de Vida da Classe Média (ICVM), calculado pela Ordem dos Economistas do Brasil (OEB), que acompanha a inflação de uma cesta de produtos e serviços com maior peso entre as famílias de renda entre 10 e 39 salários mínimos, mostram ao longo da última década comportamentos muito parecidos ao do IPCA, que tem como referência famílias com rendimentos entre 1 e 40 salários mínimos e, portanto, tem abrangência muito maior (ver quadro abaixo).
Isso não significa, entretanto, que todas as classes sociais sentem a inflação da mesma maneira. Dentro da estrutura de ponderação do IPC-C1, por exemplo, o item alimentação tem peso de 39,62% do índice. No IPCA, um índice mais amplo, o mesmo grupo representa 22,1% do cálculo. Dentro do ICVM, esse conjunto de despesas tem peso de 16,6%.
Para as famílias de baixa renda, o gasto com alimentação sozinho representa dois quintos do orçamento. “Nas classes de renda mais baixa, a variação de preços nos itens básicos, como alimentação, costuma ter um impacto muito maior no orçamento do que para as classes mais altas”, afirma o professor de economia do Insper, Otto Nogami.
Levantamento da consultoria Data Popular mostra que o gasto com alimentos pode chegar a 47% do dinheiro reservado para consumo de produtos nas famílias mais pobres. Segundo Renato Meirelles, presidente do Data Popular, a classe de renda mais baixa sofre mais com o aumento de custos de produtos básicos. O especialista explica que, como as famílias com menor renda concentram o consumo nos itens essenciais, o ajuste do orçamento é mais difícil em períodos de inflação alta. “Quem tem mais dinheiro pode cortar coisas supérfluas ou mudar hábitos, mas as pessoas não vão deixar de consumir energia elétrica e alimentos”, pondera o pesquisador.
Um exemplo de como o orçamento da baixa renda está muito mais pressionado neste início de ano é a alta da cesta básica na região metropolitana de São Paulo. O valor subiu 11,12% na comparação entre janeiro de 2015 e o mesmo mês no ano passado. Isso significa que o nível de comprometimento de gastos com alimentos das famílias com renda até 2,5 salários mínimos pode ter subido para 44% em um ano.
O item habitação, que inclui custos como energia elétrica e aluguel, tem o segundo maior peso no orçamento dos mais pobres. Conforme a ponderação do IPC-C1, a categoria consome 28,5% dos gastos das famílias de baixa renda. E nesse caso, o primeiro trimestre de 2015 também acrescentou calor da panela de pressão inflacionária com aumentos médios na conta de luz em todo o país de 23,4%, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Além dos reajustes, o impacto da adoção do sistema de bandeiras tarifárias, que aumenta ou diminui o custo da energia em função das condições de geração de eletricidade, vai representar uma alta extra de 8,5%, em média, nas tarifas. O IPCA já reflete essa escalada: em 12 meses até fevereiro, o subitem energia elétrica residencial acumula alta de 30,27%.
“Aumentos da conta de luz, de transporte e dos produtos básicos tiram muito dinheiro [de maneira absoluta] das classes C e D”, ressalta Meirelles. De acordo com Nogami, do Insper, para as famílias com renda mais alta a adequação tende a ser mais simples por conta da “gordura” no consumo de energia em relação às residências de menor renda. “Uma classe de renda mais alta tem um gasto três vezes maior do que a mais baixa. Nas famílias mais ricas, normalmente se vê aparelho de tevê na sala, nos quartos, geladeira e freezer mais potentes, além de outros equipamentos. Tudo isso acaba criando um diferencial de consumo representativo”, explica o professor de economia.
O quadro inflacionário atual, combinado com a queda na atividade, deve ser especialmente prejudicial para os mais pobres, avalia o coordenador do IPC-Fipe, André Luis Squarize Chagas. “Em 2015 e início de 2016, as famílias vão ter perda real do poder de compra, com piora no desemprego, o que vai reduzir o poder de negociação dos sindicatos nos reajustes. Isso vai atingir as famílias mais pobres, que serão as mais prejudicadas”, afirma.
A classe média também tem tido necessidade de espremer o orçamento neste início de ano. A estrutura de ponderação do ICVM aponta como maior custo dentro dos orçamentos a habitação, com peso de 30,3%, seguida de alimentação, com 16,6%, e transportes, que alcança 16,3% de participação. “Esses três itens representam dois terços do índice”, afirma o coordenador do ICVM e professor da Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA), José Tiacci Kirsten. E a inflação da habitação é outra que neste início de ano alcança dois dígitos. Em 12 meses até fevereiro, segundo o IPCA, está em 11,31%.
A inflação de serviços é o principal fator de pressão de custos nos orçamentos das classes média e, sobretudo, da alta. “Quanto maior a renda maior o peso do setor de serviços na composição do orçamento familiar”, afirma Meirelles, do Data Popular. Levantamento do instituto indica que despesas com salão de beleza, empregados domésticos, lavanderias e outros têm uma participação de 41% na parcela de recursos reservada para os gastos com serviços das famílias nas faixas mais altas de renda e de 30% nas intermediárias.
A inflação de serviços se mantém acima de 8% desde 2013, quando fechou em 8,75%. No ano passado, na leitura de 12 meses, a taxa chegou a alcançar um pico de 9,20% em junho de 2014 e, em fevereiro de 2015, situa-se em 8,58%. “Quando aumenta a inflação de serviços, de itens como alimentação fora de casa, passagem aérea e empregado doméstico, ela atinge muito mais a classe A”, afirma Meirelles.
E como as famílias de diferentes faixas de renda se ajustam aos novos preços? Segundo os especialistas, refrear o consumo é a regra geral. “Quando o bolso aperta o consumidor passa a pesquisar mais os preços e a radicalizar mais a relação custo/benefício”, pondera o presidente do Data Popular.
Mas cada extrato social tem suas particularidades. A classe C, de acordo com Meirelles, tende a se manter fiel às marcas de produtos básicos em que confia, ao contrário da classe A, que se apega mais às grifes. “Os mais ricos não limpam a casa ou cozinham, por exemplo, então tendem a olhar apenas o preço nos casos do sabão em pó, do desinfetante ou de itens alimentícios básicos.”
A classe média, por sua vez, além de cortar produtos supérfluos, torna-se mais suscetível ao chamado “viés de substitutibilidade”. “Hoje essas famílias não estão mais comprando a marca e sim o que é mais barato. Vai no mercado e compra o produto em oferta”, afirma Kirsten, coordenador do ICVM.
“Nos momentos como o atual, a classe média começa a abrir mão de produtos e hábitos que considera supérfluos. A alimentação fora do domicílio é um item que tende a ter mais ajuste. Por exemplo, aquelas famílias que saíam todo fim de semana para comer fora agora passam a ir uma vez por mês”, acrescenta Nogami, do Insper.
Segundo Chagas, da Fipe, os índices de inflação não captam os efeitos do viés de substitutibilidade. “Os indicadores consideram que as famílias vão continuar gastando sua renda da mesma maneira”, diz. Conforme o especialista, a prática de substituir uma marca ou produto por outro com melhor custo/benefício leva as famílias a ter um alívio médio em sua inflação anual de 0,5 a 0,6 ponto percentual por ano. “Por exemplo, se a inflação está em 7%, a família que torna essa prática usual na verdade está tendo um impacto de 6,5%.”
Outro efeito da inflação no orçamento familiar, explica Chagas, relaciona-se às dívidas. “Numa aceleração da inflação, o efeito para pessoas endividadas a taxa de juros prefixadas é positivo. A inflação vai corroer esse juro ao longo do tempo e, com isso, a dívida fica mais barata.”
Fonte: Valor Econômico