Mesmo ilegal, instituições mantêm em lista negra nome de quem questionou contratos
»ANAD’ANGELO
O governo tem apostado suas fichas na concessão de crédito, principalmente para compra de veículos, para deslanchar o crescimento econômico deste ano. Mas mesmo consumidores com nome limpo, sem constar no cadastro do Serviço de Proteção ao Crédito(SPC) ou da Serasa, não estão conseguindo financiar o carro novo. É que os bancos e as financeiras insistem em manter uma lista negra e secreta de consumidores que recorreram à Justiça para questionar cobranças ilegais dos contratos de empréstimos, mesmo daqueles que tiveram ganho de causa.
Essa lista é compartilhada entre as instituições financeiras. Os nomes desses consumidores circulam no Brasil todo, tanto nas agências bancárias como nas concessionárias de veículos, de forma velada, para recusar o financiamento de veículo solicitado. Oficialmente, a justificativa é que o crédito foi negado porque o pretendente não atendeu aos requisitos exigidos. Mas os funcionários das revendas acabam entregando que o motivo é o fato de ter movido uma ação judicial questionando o contrato anterior, mesmo que contra outro banco.
A prática é ilegal. O Código de Defesa do Consumi-dor (CDC) não permite a recusa no fornecimento de produto ou de serviço, salvo motivo excepcional, devidamente comprovado. O CDC também proíbe ao fornecedor repassar informação depreciativa referente a ato praticado pelo consumidor no exercício de seus direitos, caso de quem vai à Justiça.
A servidora pública Lúcia de Lourdes Pereira, 53 anos, teve o financiamento de um veículo negado em duas revendas de automóveis de Brasília, depois do envio do seu cadastro para cinco instituições financeiras. Os funcionários não revelaram o motivo da recusa. “Comentei se seria por causa de uma ação para reduzir a prestação que movi contra o banco Itaú no ano passa-do, e os dois funcionários responderam que com certeza era isso, que eu estava numa lista negra que é distribuída para todas as financeiras”, conta ela.
Lúcia financiou em seu nome um carro para um dos filhos, que já foi quitado. No processo, ela questionou a taxa de juros e a cobrança de taxas ilegais. O banco fez acordo, e a dívida foi quitada, antes da decisão do juiz. “O funcionário de uma das revendas foi categórico em me dizer que onde eu for terei o crédito negado e ressaltou que todos os bancos ficam sabendo do processo judicial.” É prática das instituições cobrarem taxas ilegais para concessão de financiamentos e empréstimos, co-mo de “taxa de abertura de crédito, a TAC, ou a título de “serviços jurídicos” ou “serviços de terceiros”, o que torna a dívida mais onerosa para o cliente.
Os bancos mantêm uma outra lista — de clientes que tiveram dificuldades de pagar seus empréstimos no passado, repactuaram a dívida e a quitaram por meio de acordo. “Mesmo passados mais de 10 anos, os servidores continuam nessa lista”, afirma o presidente do Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central (Sinal), Sérgio da Luz Belsito, citando especifica-mente o Banco do Brasil. “As instituições dizem que não há essas listas, mas elas existem sim. Só a Caixa que mudou esse critério recentemente. Já reclamamos com o BC, mas até agora nada foi feito”, afirma ele.
Procurado, o BC respondeu que “desconhece a existência de uma lista paralela de devedores do sistema financeiro nacional”. Para a instituição, só há o Sistema de Informações de Crédito (SCR), um banco de dados sobre operações de crédito, com as respectivas garantias, feitas pelos consumidores — pessoas físicas ou jurídicas — perante instituições financeiras em funciona-mento no país. O SCR foi criado e é gerido pelo próprio BC. A partir dele, os bancos conseguem saber todos os empréstimos e as dívidas que o cliente tem com qual-quer instituição que funcione legalmente no país.
Apontamentos
O Banco Itaú Unibanco não quis comentar se distribui e se usa a lista de clientes que foram à Justiça para vetar a concessão de crédito. O Santander informou que “concede todos os créditos de acordo com a legislação vigente”. O Banco do Brasil nega que mantenha ou utilize essas listas negras de clientes que tenham ido à Justiça ou feito acordo no passado, ou que repasse essas informações a outras instituições. “Sendo uma instituição financeira com uma base de mais de 55 milhões de clientes, o BB mantém registro individualizado de todo o histórico de relacionamento com seu público, observados os requisitos legais estabelecidos”, diz.
A Caixa também garante que não é prática da instituição “manter ou consultar base de clientes que possam ter ido à Justiça questionar seus empréstimos de qualquer natureza” e que “não repassa nomes de seus clientes nessa situação para outros bancos”. Também assegura que não possui lista restritiva de clientes que fizeram acordo para saldar dívidas anteriores. “Quanto à restrição de crédito, o que se consulta é a existência ou não de apontamentos nos cadastros de proteção ao crédito externos (Serasa, SPC/ Cadin) e internos”, afirma.
Direito a indenização
Os consumidores que conseguirem demonstrar que tiveram crédito negado por constar dessas listas negras podem pedir indenização por danos morais, explica um juiz do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT). Segundo ele, o banco não é obrigado a liberar crédito a quem não preenche os requisitos objetivos, mas tem que justificar a negativa. O juiz destaca que essas listas negras são ilegais. O Código de Defesa do Consumidor disciplina os cadastros com dados de clientes que podem ser mantidos pelos fornecedores de serviços. “Fora disso, os bancos estão atuando fora da lei”, diz o magistrado.
O artigo 39 do CDC proíbe o fornecedor de “repassar informação depreciativa referente a ato praticado pelo consumidor no exercício de seus direitos”. A professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Cláudia Lima Marques, em seu livro Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, bastante citado por magistrados nas decisões judiciais, esclarece que “não estão proibidas as informações sobre os consumidores (bancos de dados e cadastros regulados pelo CDC), mas, sim, as chamadas ‘listas negras’ de consumidores que reclamam e exigem direitos”.
O advogado Geraldo Tardin, do Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das Relações de Consumo (Ibedec), orienta o cliente prejudicado a notificar a empresa para que se posicione em 10 dias sobre as razões da recusa do crédito e, depois, fazer denúncia no Ministério Público. “Se a pessoa não tem restrição creditícia, não pode ser impedida de obter o financiamento”, diz.
A diretora de atendimento do Procon São Paulo, Selma do Amaral, observa que o consumidor tem o direito de saber se seu nome consta de qualquer cadastro de fornecedores e prestadores de serviço, que deve ser objetivo e claro, conforme o artigo 43 do CDC, não podendo conter dados negativos por mais de cinco anos. Após esse prazo, o consumidor não pode ter crédito negado por essa razão. Muito menos por ter buscado seu direito na Justiça. Ela lembra que as escolas tentaram circular entre elas a lista de pais inadimplentes.
Para o advogado Adriano de Andrade Cardoso, cabe aos órgãos fiscalizadores, como o Ministério Público, terem atuação mais efetiva e até ajuizarem ação civil pública. “Isso é prática abusiva e corri-queira dos bancos, com efeito sobre todos os consumidores”, observa.
Fonte: Correio Braziliense