Concertação nacional contra o impeachment dá fôlego a Dilma

    O governo já estava impregnado da sensação, na sexta-feira que antecedeu as manifestações do dia 16, depois de agitado percurso de quatro meses e epicentro em julho, de que obtivera uma trégua. Sentiu arrefecer a pressão política que vinha sentindo de maneira insuportável. 

    As manifestações de ontem, já era esperado dois dias antes, poderiam ser gigantescas em número, ou menores que as anterior, mas, como alvos da crítica, as autoridades se convenceram que mudou o ambiente.

    A presidente Dilma Rousseff considerou-se salva por uma concertação de ações, conversas e argumentos registrados nas atas políticas. Não houve um coordenador geral nem um único responsável por fazer o ar circular no Palácio do Planalto. Mas foram movidos os acordes do Executivo, do Legislativo, do Judiciário, do empresariado, e das autoridades internacionais, inclusive. 

    Como assinala um bombeiro da crise, “os fatos aconteceram e geraram consequências”. Não dá para apontar um autor. Sabe-se que a participação dos agentes do governo, por desgastado, foi a menor. A presidente Dilma Rousseff tem dois coordenadores políticos, braços direito e esquerdo, os ministros Aloizio Mercadante (Casa Civil) e José Eduardo Cardozo (Justiça). Costuma ouvir nas questões políticas os ministros Jaques Wagner (Defesa) e Aldo Rebelo (Ciência e Tecnologia). Dá missões a um ou outro auxiliar com ascendência sobre um ou outro segmento, como a mídia, os governadores, os movimentos sociais. Mas não foi ela, no comando dessa rede, o gênio da política nem sua algoz. 

    Os sinais foram surgindo na sociedade, em momentos e locais distintos, e na economia os agentes se mobilizaram muito e primeiro. Quando a presidente Dilma foi aos Estados Unidos, Tim Geithner, William Rhodes, Thomas Shannon demonstraram ao governo, ao contrário da hostilidade esperada, preocupações candentes com a queda da economia brasileira. Aqui está o terceiro mercado dos investidores americanos, que gostariam de continuar a ter onde aplicar. Em períodos mais recentes, os embaixadores dos Estados Unidos e da Alemanha, acreditados em Brasília, expuseram ao governo as preocupações dos seus representados e colocaram à disposição as boias possíveis. 

    Os presidentes do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco, e do Itaú, Roberto Setubal, foram à luta, aproveitando entrevistas e discursos para pedir moderação, não apenas em apoio a medidas da economia, mas à própria figura da presidente da República. Setubal, em uma inauguração do centro de processamento de dados da instituição que preside, por volta de abril, diante do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e para surpresa do político, embutiu em seu discurso público a disposição em ajudar. Estava tocado pelas fortes manifestações de março. 

    Paulo Skaf, da Fiesp, e Eduardo Eugenio Gouvêa Vieira, pareceram em certo momento insufladores do golpe da troca da Dilma pelo vice Michel Temer, com quem se reuniram, mas a leitura correta, hoje feita no governo, é que estavam respondendo ao apelo de Temer: “Me ajudem a ajudar”. Com o empresariado da indústria e da agricultura, com governadores e formadores de opinião, destaca-se na avaliação da concertação na sociedade o papel do ex-ministro Delfim Neto. 

    “Era uma junta médica querendo ajudar o paciente quando todos já o haviam desenganado”, diz um intérprete. Entre empresários e banqueiros, chegou-se logo à constatação de que se já estava alto o preço com Dilma, maior seria sem ela. 

    A salvação veio em capítulos, e ao lado da economia, que precipitou a crise e dominou o seu ápice, seguiu funcionando em paralelo o motor da política. 

    O governo reconhece, num raro mea culpa, que errou muito na política, mas registra que seus adversários erraram mais. Entre eles, e principalmente, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). “Governo é como cobra. Se estiver morto no meio da estrada não se deve chegar perto”, diz interlocutor da presidente. Cunha chegou. Na avaliação interna, resolveu enfrentar o governo e desafiar o Ministério Público, em seguida partiu para cima de Renan Calheiros (PMDB-AL), o presidente do Senado, e quem mais viesse. Diz o adágio popular que quem não deve não teme. Para o governo, Eduardo Cunha não quis provar que não devia, resolveu provar que não temia para as pessoas acharem que não devia. E o fez desafiando nada menos que o procurador-geral da República, Rodrigo Janot. 

    Contra o governo, e na visão do governo, abriu-se na Câmara uma pauta com a votação de projeto de reajuste generalizado e em cascata que acabaria com o ajuste fiscal em segundos. O empresariado se convenceu dos malefícios da iniciativa, bem como os governadores e os prefeitos. Supostos aliados de Cunha alertaram que todas as corporações do país, federais, estaduais e municipais, queriam entrar na PEC do reajuste dos advogados da União. 

    Cunha disse ao Valor, em uma entrevista publicada na sexta-feira, que há momentos em que a pressão para votar um projeto é irresistível, e que o próprio Michel Temer, quando presidente da Câmara, colocou em votação a PEC 300, do reajuste das polícias. O governo constata que é verdade, porém muitos outros instrumentos de criação de despesas foram engavetados por presidentes da Câmara aliados, comprometidos com as contas. 

    Na política, foi extenso e complexo o capítulo Michel Temer, cujas declarações à procura de alguém para coordenar a união do país foram mal interpretadas. O que se queria não era tomar o poder, mas dar poder ao vice, explica-se agora. Era para ele ser um lider informal, e perdeu tempo nas explicações sobre o significado de seu discurso. 

    Tirar Dilma por Michel jogava a eleição de 2018 em dois resultados ruins, de convulsão do país, precocemente. Numa disputa entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o senador Aécio Neves (PSDB-MG), divagam próceres do governo, “seria catastrófico Lula ganhar, ou Lula perder. Como Aécio iria governar?” Os movimentos a favor de Lula iriam para a rua em 24 horas: têm dinheiro, organização, tempo. Seria impossível o presidente eleito assumir. 

    Os governadores do Nordeste já haviam se manifestado a favor da presidente, em carta. O do Rio Grande do Norte chegou a dizer que quebraria; e os da oposição, entre eles Geraldo Alckmin, Beto Richa (PR) e Marconi Perillo (GO), fugiram do cenário do impeachment da presidente Dilma. Alckmin, registram os relatores da saga, compareceu a diferentes solenidades, em Mato Grosso do Sul, em Pernambuco, no interior de São Paulo, em todas fazendo o discurso da legalidade, serenando os ânimos. 

    O sangramento de Dilma, tática que a certa altura se confundiu com a ideia do impeachment, demorou a ser notado em sua gravidade. Quando todos se deram conta que a estavam levando à morte e não ao enfraquecimento, viu-se que era preciso dar força a ela e a Temer para conseguirem aprovar medidas para reerguer a economia. 

    Quando o presidente do Senado percebeu o que ocorria, pensou com os seus amigos senadores: “Se vai depender do Michel, que dependa de mim”. Renan sempre achou que Temer tem poder demais. E começou a fazer os movimentos para segurar a presidente no cargo e ocupar o espaço bruto do desgaste de Cunha e do que considerava a pretensão salvadora de Temer. Como as medidas do ajuste estavam no Senado e do presidente da Casa dependiam importantes iniciativas das quais o governo precisa para sobreviver, foi fácil para Renan embainhar novamente a espada. 

    Para se capitalizar, Renan não precisou usar a sua já notória influência no Tribunal de Contas da União. Ali o governo já notara que, com as denúncias atingindo alguns ministros, o combate estava apenas concentrado em Augusto Nardes, que, nesta avaliação, tendo projetos políticos e eleitorais no Rio Grande do Sul, levaria o foco de luz até onde pudesse. 

    O governo notou que o Judiciário como um todo, onde vinha fazendo maioria folgada, reconheceu que não dá para colocar nas suas costas a responsabilidade de tirar um presidente da República contra quem não há nenhuma denúncia de desonestidade. 

    A discrição do Judiciário e sua presença efetiva na operação culminaram com o despacho do ministro Luiz Roberto Barroso, na noite de quinta-feira, retirando das mãos de Eduardo Cunha e passando às de Renan Calheiros a prerrogativa de, como presidente do Congresso, agendar a votação das contas do governo. Essa iniciativa não agradou Renan, como registra momento de bom humor da conversa política sobre a crise, porque a glória da ação protetora ficou agora com o Supremo Tribunal Federal, quando o presidente do Senado já se preparava para engavetar espetacularmente as contas da presidente Dilma. 

    A metáfora: estavam todos assoprando na mesma direção, o fogo pegou finalmente na sexta-feira, o ambiente melhorou. A realidade: nada está resolvido. A situação da economia é dificílima, mas foi dado à presidente fôlego político para retomar o governo e negociar a aprovação de medidas no Congresso.

     

    Fonte: Valor Econômico

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