Cotas raciais em concursos são ação afirmativa ou privilégio?

    Por Fabrício Motta

    No dia 20 de janeiro a foi noticiado com grande destaque decisão judicial que considerou inconstitucional a Lei 12.990/14 — que reserva 20% de vagas nos concursos públicos para negros. Na decisão singular, o juiz da 8ª Vara do Trabalho de João Pessoa entendeu que o estabelecimento de cotas raciais viola os princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e da eficiência do serviço público e determinou que um candidato ao cargo de escriturário do Banco do Brasil assumisse a vaga que havia sido preenchida por meio de cota. Em que pese tratar-se do exercício do controle difuso de constitucionalidade, que restringe seus efeitos ao caso concreto, a decisão é importante e inovadora.

    Já tive a oportunidade de manifestar meu entendimento a respeito dessa polêmica questão, primeiramente, em palestra no Congresso Brasileiro de Direito Administrativo realizado em 2013, na cidade de Fortaleza, e posteriormente em artigo publicado na seção “Tendências e Debates”, da Folha de São Paulo, em 30 de junho de 2014. A despeito das polêmicas que envolvem a questão e do ambiente de intolerância no qual costumam ser discutidas, a sentença antes referida animou-me a tratar novamente do assunto.

    As cotas têm sido utilizadas como instrumentos de efetivação de “ações afirmativas”, assim entendidas as políticas públicas e privadas voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à discriminação positiva de pessoas integrantes de grupos que estejam em situação vulnerável, sendo vítimas de estigma social. Há relativo consenso de que as ações afirmativas têm origem nos Estados Unidos, mais precisamente nos movimentos pelos direitos civis das minorias étnicas ocorridos na década de 60. Estas ações podem possuir objetivos diversos, sendo que no caso da população negra busca-se não somente a promoção de Justiça compensatória em razão do passado escravocrata como também a promoção da multiculturalidade e o fortalecimento da autoestima por meio da integração racial nos diversos meios sociais.

    As diferenças entre a situação dos negros nos Estados Unidos e no Brasil não se resumem ao direito e são objeto do estudo de diversas ciências sociais e humanas. Por essas razões, existem importantes questionamentos a respeito da necessidade (e mesmo constitucionalidade) da adoção de políticas públicas afirmativas calcadas unicamente no fator “raça” como elemento de discriminação. A lei federal que estabelece cotas nas universidades públicas (Lei nº 12.711/12), por exemplo, é adequada ao considerar não somente a raça como também a condição socioeconômica como critério para acesso às cotas. Não é o caso de tratar dessas questões neste espaço, até mesmo em razão de não possuir formação específica nessas áreas. Entretanto, convém registrar que duas análises em especial ampararam minha opinião: inicialmente, o estudo feito pela procuradora do Distrito Federal Roberta Kaufmann[1], uma das advogadas que assinou a inicial da ADPF 186/DF (que questionou as cotas nas universidades); em um segundo momento, a exaustiva pesquisa realizada pelo geógrafo Demétrio Magnoli constante do livro “Uma gota de sangue: história do pensamento racial” (São Paulo, Editora Contexto, 2009).

    Como se sabe, o Supremo Tribunal Federal considerou improcedente a ADPF 186/DF, aduzindo a inexistência de ofensa à Constituição na utilização de critérios étnico-raciais ou socioeconômicos para reserva de vagas em instituições públicas de ensino superior. Entretanto, o raciocínio utilizado para as cotas nas universidades não pode ser o mesmo com relação aos cargos públicos.

    Com efeito, de acordo com a Constituição a educação é não só um meio para a qualificação para o trabalho e para o exercício da cidadania, mas também um fim em si: a educação deve proporcionar o pleno desenvolvimento da pessoa e é essencial para a realização das liberdades, incluindo a liberdade de pensamento. Todos têm direito à educação, com o correspondente dever do Estado de fornecê-la, mas não se pode dizer que todos têm direito a um cargo público.

    Cargos públicos existem para bem servir a população, e por meio do concurso são selecionados de forma impessoal os mais aptos para prestar o melhor serviço público possível. Cargo público, como regra, não se destina simplesmente à geração de renda ou promoção de emprego: para esses objetivos – plenamente justificáveis e importantes – existem políticas públicas e sociais específicas. Ao se comparar as duas situações (cotas nas universidades e cotas nos concursos), pode-se dizer inicialmente que a educação é ponto de partida, enquanto o concurso é ponto de chegada: se o ponto de partida é igualado de forma justa por meio do acesso à universidade pública, não parece haver sentido em criar caminho mais curto para a chegada.

    A medida é discriminatória por conter em sua gênese um pressuposto injustificável: os que possuem acesso à mesma educação superior não possuem as mesmas condições de disputar, de forma objetiva, certames que utilizam o mérito como critério seletivo. Na realidade, o contrário deve necessariamente ocorrer: espera-se que a integração racial nos diversos escalões do serviço público ocorra naturalmente em decorrência da implantação das cotas universitárias.

    No tocante ao acesso aos cargos públicos, a pergunta que deve ser feita é se há alguma “dívida histórica” a ser resgatada por meio de ação afirmativa. A resposta só pode ser afirmativa: existe, sim, um grupo de pessoas que historicamente tem sido desfavorecido no acesso aos cargos públicos e que, por essa razão, necessita de medidas afirmativas inclusivas. Em nosso país há um déficit secular de impessoalidade no acesso às funções públicas em razão de nossa formação e tradição patrimonialistas.

    Com apoio em obras clássicas de Oliveira Vianna, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, dentre outras, Eneuton Dornelles Pessoa de Carvalho[2] afirma que desde o descobrimento do Brasil, com diversas peculiaridades a depender do momento histórico, a indicação para os cargos públicos obedece a critérios subjetivos de compadrio, amizade e parentesco.

    Em apertada síntese, o autor anota que no período do descobrimento a função pública era basicamente arrecadadora e assumia a forma delegada, isto é, a Coroa transferia os negócios públicos aos poderosos locais. Esses, por sua vez, embora não fossem funcionários da Coroa, tinham o poder de nomeação aos cargos públicos, respeitados os limites fixados: as nomeações eram uma forma de aliciamento ou de retribuição de favores.

    Com a vinda da família real, em 1808, devido à escassez de edificações na nova capital “fez-se uso do recinto doméstico também como local de desempenho das funções públicas, o que dificultou a necessária separação entre o público e o privado, condição essencial a qualquer processo de racionalização burocrática.

    A criação de cargos e honrarias para recompensar os que acompanharam a Família Real na longa travessia também era indício de que a atuação do aparelho administrativo não se modificara”. Além disso, a substituição dos representantes da Coroa Portuguesa pelos do governo imperial reforçou o poder das oligarquias locais, que passaram a controlar os cargos burocráticos e a ter assento no Parlamento.

    Até 1822, anota o autor, “serviço público significava uma honraria, e somente os “homens bons” poderiam assumi-lo, ficando as administrações responsáveis mais por representar o poder político dos clãs locais do que por tratar dos assuntos de interesse coletivo. Assim, o poder da câmara municipal, com as leis e determinações discricionárias de cargos públicos, era um plus ao poder econômico e militar do clã familiar que a controlava”.

    Com a Constituição de 1824, muito embora tenha ficado expresso o reconhecimento do direito de todos de serem admitidos no serviço público, na prática eram nomeados apenas os que possuíam compadrios e boas amizades. Segundo Eneuton, “se anteriormente a indicação para os cargos públicos devia-se, sobretudo, aos laços de parentesco e amizade, a isso veio se somar a disputa política entre os partidos liberal e conservador e a patronagem partidária. A burocracia no Império ficava, então, sujeita às vicissitudes da política e ao revezamento dos partidos no poder.

    Da mesma forma, no exercício do cargo vigorava a lógica do favor e da clientela, a expensas do interesse público e dos procedimentos racional-legais. Só se fala em mérito no serviço público após 1930; mesmo assim os sucessivos projetos de racionalização burocrática-administrativa não conseguiram eliminar os traços de clientelismo, patriarcalismo e patrimonialismo do serviço público”.

    Nos dias atuais, essa tradição lamentável resiste bravamente por meio da existência de centenas de milhares de cargos em comissão[3], em todas as esferas, livremente providos por meio de escolhas pessoais. Como se não bastasse, mesmo passados 27 anos de promulgação da Constituição, ainda existem instituições públicas que insistem em não realizar concurso, desobedecendo sem qualquer cerimônia a ordem jurídica.

    Retomando a questão central, o grupo de pessoas que necessita de ação afirmativa é composto pelos cidadãos de todas as raças que não possuem padrinhos, parentes, amigos, religiões ou partidos políticos para apoiá-los. As pessoas que necessitam reforçar a sua autoestima são aquelas acostumadas a assistir, impotentes, a distribuição de cargos pautada por critérios não republicanos.

    Esse é o maior passivo a ser resgatado: o abandono de um sistema secular patriarcal e clientelista que enxerga os cargos como propriedades do governante para serem livremente distribuídos entre os mais próximos, independente de sua raça. Antes de se falar em cotas, temos que discutir com seriedade e responsabilidade a utilização ilegítima do serviço público para gerar emprego para os amigos. Sob esse prisma, o concurso público, por meio do qual se possibilita uma seleção objetiva pautada exclusivamente no mérito pessoal, já é a ação afirmativa.

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