Crimes de responsabilidade e impeachment

    GERALDO BRINDEIRO

    Doutor em direito por Yale, professor da UnB, foi procurador-geral da República (1995-2003) 

    Crimes de responsabilidade são atos atentatórios à Constituição – definidos em lei especial, que também estabelece normas de processo e julgamento, visando fixar parâmetros jurídicos e garantias para o julgamento político. O objetivo da norma constitucional é evitar julgamentos meramente político-partidários, pois o presidente da República não pode (diferentemente do que ocorre no regime parlamentarista) ser afastado do cargo antes do término do mandato por moção de desconfiança do parlamento. E o presidente poderá ser absolvido no processo penal, mas condenado no processo de impeachment, como ocorreu com o então presidente Collor, o que demonstra per se a diferença da natureza dos respectivos processos. 

    No processo de impeachment, não há propriamente pena, mas sanção política, a perda do cargo e a inabilitação para o exercício de função pública por oito anos. O presidente da República não poderia ser penalizado duas vezes pelo mesmo ato, o que constituiria bis in idem ou, conforme a expressão do direito norte-americano, double jeopardy, vedada pela 5ª Emenda à Constituição Americana. Como observa Tribe, de Harvard, a natureza política do processo de impeachment afasta a aplicabilidade da mencionada vedação constitucional. Se o processo de impeachment é político, também as ofensas suscetíveis de submissão a ele devem sê-lo. 

    No constitucionalismo norte-americano, a expressão high crimes and misdemeanors é objeto de questões hermenêuticas. A Suprema Corte tem reconhecido que a base constitucional para o impeachment do presidente pelo Congresso encontra-se em great offenses, no sentido do common law, que impliquem gross breach of trust ou serious abuse of power. Hamilton afirmava a natureza política do impeachment que preconizava e das ofensas a ele sujeitas, considerando-as injúrias à sociedade mesma e definindo a má conduta dos homens públicos como “abuse” ou “violation of public trust”. 

    No Brasil, também somente infrações graves, penais ou político-administrativas podem constituir fundamento constitucional para o impeachment do presidente da República. Se ele comete crime contra a administração pública, estará incidindo, simultaneamente, em crime comum e crime de responsabilidade, devendo ser processado e julgado respectivamente pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Senado. 

    O presidente Fernando Collor, denunciado pela prática de crime de corrupção pelo procurador-geral da República, foi absolvido pelo Supremo Tribunal Federal. Foi, porém, condenado pelo Senado, mesmo após a renúncia, limitando-se a condenação à inabilitação por oito anos para o exercício de qualquer função pública. Como o chefe de governo deve zelar pela probidade na administração (C.F., art. 85, V), adotando as medidas necessárias para “tornar efetiva a responsabilidade dos subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição”, se não o fizer, poderá ser condenado por crime de responsabilidade, ainda que não tenha praticado crime comum, por omissão, ou ainda, por “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” (Lei n° 1.079/50, art. 8°, incisos 3 e 7).

    O presidente Richard Nixon foi submetido a processo de impeachment mediante três acusações básicas (Articles of Impeachment): obstrução da Justiça, violação do juramento constitucional e desobediência a notificações (subpoenas) do Comitê Judiciário da Câmara. As acusações disseram respeito à invasão do edifício Watergate em Washington, sede do comitê eleitoral do Partido Democrata. A primeira referia-se à conduta do presidente em se engajar, pessoalmente e por intermédio de seus subordinados, em plano para postergar, impedir e obstruir as investigações do caso Watergate. A segunda constituiu-se na violação do juramento de respeitar a Constituição e do dever constitucional de cuidar para que as leis fossem fielmente cumpridas. E a terceira tratou da recusa em entregar documentos e fornecer informações ao Comitê Judiciário da Câmara. Nixon renunciou ao cargo de presidente, após a decisão da Suprema Corte que determinou a entrega das informações e documentos ao Comitê Judiciário da Câmara (House Judiciary Committee), tornando virtualmente inevitável sua condenação pelo Senado e a remoção do cargo.

     

    Fonte: Correio Braziliense

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