“Eu não me lembro do texto. Você pode ler para mim?”, pediu gentilmente o deputado Alfredo Kaefer (PSL-PR) ao repórter, que buscava conhecer seus argumentos para a apresentação de emendas à MP 784, medida provisória que colocou o Banco Central (BC) e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) na lista de órgãos do governo responsáveis pela negociação de acordos de leniência com instituições financeiras. Confessando falta de intimidade com o assunto, Kaefer disse que iria pesquisar e pediu: “Me liga amanhã”. No dia seguinte, explicou suas motivações e reconheceu que as emendas foram encomendadas pela Confederação Nacional de Instituições Financeiras (CNF).
O deputado paranaense, tido como parlamentar sério e visivelmente dedicado nas comissões em que atua, nem de longe é um caso isolado de ignorância no debate de medidas provisórias com conteúdo altamente técnico. As MPs, que muitas vezes nada têm de urgente, costumam passar meses rodando de um ministério para outro até chegarem ao Palácio do Planalto. Antes da assinatura presidencial, são submetidas ao escrutínio da Casa Civil, que frequentemente também consome semanas. Só depois disso vão para o Congresso Nacional. Quando finalmente cruzam a praça dos Três Poderes, ativa-se uma veloz contagem regressiva para que elas não percam a validade.
Na corrida contra o relógio, deputados e senadores têm apenas seis dias para propor emendas que modifiquem o texto original de uma MP. É obviamente um prazo que dificulta, se não inviabiliza completamente, qualquer contribuição a mudanças na lei. Por isso, quase sempre agem escancaradamente como mera correia de transmissão para setores bem organizados do empresariado, que contam com representações em Brasília e diálogo privilegiado no Congresso Nacional. É dos parlamentares a prerrogativa exclusiva de apresentar emendas. Ninguém de fora pode bater no protocolo da Câmara ou do Senado, alegar que seus interesses são afetados e sair de lá com um comprovante de entrega de proposta para alteração da MP.
Sistema abre brecha para troca de favores com o setor privado
Esse monopólio da atividade legislativa obriga grupos de interesse a manter uma relação dúbia com os políticos. A interlocução de grandes empresas com o Congresso normalmente se dá por meio de associações empresariais sediadas na capital. Elas negociam os assuntos “sérios” de forma absolutamente técnica. Não raro entregam aos deputados e senadores um texto fechado, que se transforma em emenda, como fez a CNF com Alfredo Kaefer.
Cabe às empresas filiadas, na expectativa de retribuir favores obtidos ao longo do mandato e na tentativa de manter um aliado no Legislativo, fazer contribuições ao parlamentar em sua campanha seguinte. Faz parte do jogo democrático. Apoiar a eleição de uma pessoa que se sensibiliza com temas caros aos seus interesses não constitui crime. Esse sistema reforça, porém, o peso do poder econômico na elaboração das leis. Isso quando não acontece coisa pior. As delações da Odebrecht se converteram em um show de entranhas da relação empresários-políticos.
Ex-executivos afirmaram ter pago propina para influenciar na tramitação de 12 medidas provisórias editadas entre 2005 e 2015. O senador Romero Jucá (PMDB-RR), por exemplo, teria recebido por quatro emendas redigidas pela própria empreiteira com o objetivo de mudar a MP 651, que tratava de assuntos relacionados a tributos. O presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ), da Câmara, é acusado de ter levado R$ 100 mil por outra emenda. Cálculos feitos após as delações indicam que R$ 17 milhões foram gastos pela Odebrecht em 14 MPs.
Ao contrário do que seria intuitivo pensar sobre um governo semiparlamentarista, o presidente Michel Temer assinou mais medidas provisórias em seus 14 meses completos de gestão do que sua antecessora em tempo equivalente no primeiro e no segundo mandatos. Foram 37 no governo Dilma 1, 46 no governo Dilma 2 e 60 até hoje com Temer. Outras tantas vêm por aí. Nos próximos dias, serão logo três na área de mineração – aumentando os royalties, criando uma agência reguladora e ajustando o marco regulatório vigente desde 1967. No setor elétrico, uma consulta pública aberta pelo Ministério de Minas e Energia deve redundar em mais uma medida provisória, que se tornará centro da atenção para mais de duas dezenas de associações e seus lobistas em Brasília.
Para o Palácio do Planalto, diferentemente do que ocorria no passado, agora as MPs são negociadas previamente e não mais enfiadas goela abaixo do Congresso. Pode ser. Mas, tão logo chegam ao Parlamento, abre-se de novo o balcão de negócios para aproveitar sua rápida tramitação e emplacar mudanças a toque de caixa em questões bilionárias. É uma brecha que deveria ser fechada.
Dois textos em tramitação no Congresso jogam luz sobre isso. Um é o projeto de lei, de autoria do deputado Carlos Zarattini (PT-SP) e relatado por Cristiane Brasil (PTB-RJ), que disciplina a atividade de lobby. Se aprovado, o projeto garantiria aos profissionais de relações governamentais a possibilidade de apresentar diretamente emendas e até substitutivos. Já foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), aguarda votação em plenário, não está na lista de prioridades do governo e muito menos de parlamentares temerosos de perder essa exclusividade.
A PEC 47, de Romero Jucá, também legaliza a ação dos “agentes de representação de interesses” – pode me chamar de lobista mesmo. Para o senador, iniciativas anteriores de regulamentar a profissão fracassaram por terem sido objeto de projetos de lei ordinária, gerando dúvidas de ordem constitucional. Como ponto em comum com o texto da Câmara, autoriza igualmente os representantes do setor privado a encaminhar suas próprias emendas no debate legislativo.
É besteira acreditar que isso acabaria com esquemas ilegais no andamento de medidas provisórias. Mas quebrar o monopólio na proposição de emendas tira uma prática nefasta de cena. Só não vale ser uma iniciativa por MP. Quem sabe não se possa pensar nela como uma 11ª medida de combate à corrupção.