Déficit da previdência? Que déficit?

    EBC
    Créditos da foto: EBC

    Dois dias após a presidenta Dilma Rousseff ir ao Congresso propor que o legislativo se una ao executivo para aprovar a reforma da previdência, parlamentares, acadêmicos, operadores do direito e sindicalistas debateram a proposta por mais de cinco horas, em audiência pública promovida pela Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado, nesta quinta (4). O consenso saiu fácil: todos eles se manifestaram terminantemente contrários.

    Professora do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisadora do tema, Denise Gentil comprovou com dados oficiais que, apesar da crise econômica e da discutível política de desoneração fiscal adotada pelo governo desde 2010, o sistema de seguridade social brasileiro é superavitário e cumpre bem seu papel social de distribuir renda, ao contrário do que alega o governo e a mídia coorporativa. “Não há nada de errado com a previdência. O sistema é sólido e se sustenta mesmo na crise”, afirmou.

    De acordo com ela, dados preliminares apontam que em 2015, um ano marcado por forte recessão e alta nas taxas de desemprego, a previdência obteve uma receita bruta de R$ 675,1 bilhões, e gastou R$ 658,9 bilhões. Portanto, mesmo com todos os problemas, ainda conseguiu gerar um superávit de R$ 16,1 bilhões. Os dados relativos a 2014, já consolidados, registram uma receita de R$ 658.410 bilhões contra despesas de R$ 622.895 bilhões, o que resultou em uma sobra no caixa da ordem de R$ 35,5 bilhões.

    E tudo isso apesar de, naquele ano, o governo ter aberto mão de R$136,4 bilhões só em desonerações previdenciárias. Um volume de dinheiro que, segundo a professora, equivaleu a 2,6% do Produto Interno Bruto (PIB), ou seja, de toda a riqueza gerada pelo país em 2014. Os dados preliminares apontam que, em 2015, as desonerações aprovadas pelo governo retiraram da previdência algo em torno de R$ 157.647 bilhões, ou 2,75% do PIB. Para este ano, a estimativa é que a perda seja da ordem de R$ 142.965 bilhões, ou 2,29% do PIB.

    O mais grave, conforme Denise Gentil, é que a política de desoneração do governo, implantada com o discurso que iria proteger o trabalho formal, resultou no grande fiasco que pode ser medido hoje pelo grave aumento nas taxas de desemprego “A política fiscal do governo Dilma é um retumbante fracasso. A desoneração em grande escala prejudica o financiamento futuro das políticas sociais. Não é aceitável que o governo adote esse patamar estratosférico de renúncia e agora proponha corte de gastos”, denunciou.

    Não ao discurso catastrófico

    A pesquisadora também rechaçou o discurso adotado pela presidenta e reverberado pela mídia de que o aumento da expectativa de vida da população brasileira irá tornar a previdência inviável e ameaçar a futura aposentadoria dos brasileiros. “Para viabilizar a reforma, o governo incorporou o discurso catastrófico da transição demográfica. Mas o fenômeno também pode ser visto por outras perspectivas”, explicou.

    Conforme ela, se a população vai de fato envelhecer, o governo, então, poderá reduzir seus gastos com educação, principalmente na faixa de 0 a 7 anos. “O governo poderá universalizar a educação em todos os níveis e isso permitirá que o trabalhador, melhor qualificado, produza mais e sustente a nova realidade demográfica”, exemplificou.

    A professora acrescentou que o envelhecimento da população irá fortalecer também a inserção das mulheres no mercado de trabalho, aumentado a base de contribuintes da previdência.

    Ela admite que, neste processo, os gastos com os setores de saúde e previdência tendem de fato a aumentar, mas não acredita que isso ocorra como o propagado pelos apoiadores da reforma. Para ela, os gastos com a previdência funcionam e funcionarão como uma política pública de transferência de renda, principalmente para os mais pobres que poderão incrementar seu nível de consumo. “O gasto previdenciário serve também para produzir maior dinamismo na economia”, destacou.

    Para Denise Gentil, a visão pessimista que avaliza a reforma considera variáveis difíceis demais de serem previstas, como ocorre com a variação do PIB, para a qual não há consenso sequer para este ano. “Nós não temos um determinismo demográfico a enfrentar, mas sim uma escolha política de que país queremos. Esta reforma da previdência me parece muito mais uma imposição do mercado que irá reverter as conquistas sociais da última década”, defendeu.

    Onde estão as contrapartida às desonerações?

    Procurador-geral do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ronaldo Curado Fleury também criticou a proposta de reforma da previdência e a política de desonerações do atual governo. “É um absurdo o volume de recursos de que o governo abre mão com essas desonerações, sem que a sociedade receba nada em troca”, ressaltou.

    Para ele, é fundamental que, em renúncias fiscais, o governo estabeleça contrapartidas para as empresas, como aumento da oferta de empregos ou das remunerações, e mesmo investimentos em tecnologia. “Nas concessões de portos e aeroportos, a contrapartida é zero. Não há uma cláusula sequer para obrigar as empresas concessionárias a cumprirem a legislação trabalhista. É por isso que muitas nem repassam para a previdência o que recolhem dos trabalhadores”, denunciou.

    Premissa errada, solução falaciosa

    Presidente da Comissão de Seguridade Social da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Thaís Riedel reforçou que a proposta de reforma da previdência parte de uma premissa equivocada: o déficit alegado pelo governo, que não existe de fato. “Quando a gente olha todo o sistema da seguridade, vê que não há déficit. O governo só encontra um porque separa as receitas, porque separa o inseparável”, afirmou.

    Para a advogada, a reforma da previdência é um processo claro de retirada de direitos dos trabalhadores brasileiros, o que é vedado pela Constituição. “É unanimidade entre os estudiosos do direito previdenciário que não há déficit na previdência e que essa retirada de direitos é inconstitucional”, destacou.

    A maquiagem que sustenta o discurso

    Presidente do Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central, Marcos Piffer explicou como é feita a maquiagem contábil que torna a previdência deficitária. Segundo ele, retira-se receitas de contribuições sociais como o Confins e o PIS/Pasef, e incrementa-se as despesas com os gastos de saúde, entre outros. “Nós precisamos denunciar veementemente a forma como são divulgadas as contas da previdência, idealizada sob medida para a sustentar essa falácia, repetida como mantra pela imprensa, de que ela é deficitária”, conclamou.

    O sindicalista criticou duramente a política econômica adotada pelo governo Dilma, que só favorece o mercado brasileiro. Segundo ele, enquanto o país vive uma recessão e os trabalhadores são penalizados com o desemprego, o Itaú divulgou esta semana seu balanço anual, no qual revela que, só em 2015, lucrou R$ 23 bilhões. “Um único banco brasileiro lucrou mais do que o governo gasta com o programa Bolsa Família, que atende a 40 milhões de brasileiros. Nós precisamos reverter esta lógica”, defendeu.

    Quem é contra a reforma

    Todos os representantes das centrais sindicais presentes ao evento se pronunciaram contrários à proposta. O secretário Nacional de Assuntos Jurídicos Central Única dos Trabalhadores (CUT), Valeir Ertle, disse que uma pesquisa feita pela entidade aferiu que 88% dos trabalhadores brasileiros são contra a reforma da previdência e 75% são favoráveis às políticas públicas de transferência de renda. “Esta proposta não é a do governo que nós elegemos, mas sim a da oposição”, afirmou.

    Apenas dois senadores participaram da sessão: Paulo Paim (PT-RS) e Lindberg Farias (PT-RJ).  E embora ambos pertençam ao partido da presidenta que propôs a reforma, ambos afirmaram que irão trabalhar para derrotá-la. “Temos que ter forças neste momento para mostrar que o rumo está errado. Às vezes, o melhor amigo não é o que fica calado, mas o que diz que o caminho está errado”, justificou Farias.

    Matéria anteriorCDH vai debater trabalho e reformas anunciadas pelo governo
    Matéria seguinteAuditor ameaça arrecadação