Devedor contumaz tem vantagem competitiva

    Por Gleise de Castro | Para o Valor, de São Paulo
    Os sucessivos programas de parcelamento de dívidas tributárias, conhecidos como Refis, além de produzirem resultados muito aquém dos esperados, têm funcionado como um incentivo ao não pagamento regular de tributos por parte das empresas. Muitas se acostumaram a saldar parte das parcelas e suspender o pagamento, à espera de novo programa. Nesse círculo vicioso está a figura do devedor contumaz, que inscreve sucessivamente sua dívida nesses programas e nunca paga, obtendo vantagem indevida em relação à concorrência.

    Nos últimos 16 anos, foram criados aproximadamente 30 programas de parcelamento. “O contribuinte já se acostumou com isso”, diz João Paulo Ramos Fachada, subsecretário de arrecadação e cobrança da Receita Federal. A Receita estima que R$ 18,6 bilhões deixaram de ser arrecadados em obrigações tributárias correntes por ano, desde 2001, em decorrência dos parcelamentos especiais. “O uso indevido de sucessivos Refis não educa o contribuinte”, afirma Heleno Torres, professor de direito tributário da Universidade de São Paulo (USP).

    Segundo estudo da Receita, os contribuintes que aderiram a três parcelamentos especiais ou mais detêm uma dívida de R$ 160,275 bilhões. Desse total, 68,6% são de contribuintes sujeitos a acompanhamento diferenciado – por registrarem faturamento acima de R$ 150 milhões – que reiteradamente se beneficiam das vantagens dos Refis, como redução de multas e Juros e longo prazo para pagamento. Em 2016, havia no país 9.427 empresas que se enquadravam no critério de acompanhamento diferenciado, das quais 2.023 haviam participado de três ou mais modalidades de parcelamento, o que caracteriza, no entender da Receita, a utilização contumaz desse tipo de programa.

    Dados do novo Refis, encerrado em 31 de outubro, demonstram que a prática continua. Dos cerca de 400 mil contribuintes que aderiram ao novo Refis, encerrado em 31 de outubro, mais de 73 mil já contraíram novas dívidas tributárias. Uma das poucas exigências era exatamente a de não contrair novas dívidas. “Essa é uma das razões que explicam por que os parcelamentos oficiais não resolvem o problema”, diz Fachada.

    Edson Vismona, presidente executivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), define o devedor contumaz como “um arranjo para ganhar dinheiro fácil, burlar o Fisco e driblar a concorrência de forma criminosa”. De acordo com instituto, os setores mais visados são aqueles de alta demanda, elevada carga tributária e baixa margem de lucro, como combustíveis, bebidas, cigarros e medicamentos. Só no mercado de cigarros, segundo Vismona, a dívida chega a R$ 17 bilhões. Projeto de lei apresentado no Senado em agosto, pela senadora Ana Amélia (PP-RS), e apoiado pelo ETCO, visa coibir essa prática com a regulamentação do Artigo 146-A, da Constituição, que caracteriza a figura do devedor contumaz.

    Para Heleno Torres, é preciso não confundir o devedor contumaz, que não paga o tributo, com aqueles adimplentes que são litigantes, ou seja, que contestam a cobrança tributária como indevida para esperar o próximo Refis. O contumaz também não se confunde com o inadimplente eventual. “Qualquer pessoa pode se tornar inadimplente em um momento de crise e não conseguir pagar os tributos”, diz Torres. Para lidar com o problema do devedor contumaz, a seu ver, não é suficiente aplicar multa. O melhor seria usar o expediente de regimes especiais, como o que o obrigaria a pagar com prazo mais curto, e tornar a fiscalização mais presente na empresa.

    Para enfrentar os devedores contumazes, a Receita criou em 2015 a cobrança administrativa especial, que é uma análise aprofundada da empresa, verificando indicadores como balanço, endividamento e distribuição de resultados e também os benefícios concedidos a ela, como benefício fiscal, concessões e permissões. Se a empresa tiver condições de pagar e não o fizer, esses benefícios são cassados.

    “A lógica da cobrança especial é que não se pode dar nenhum benefício a quem não paga impostos”, diz o subsecretário da Receita. Segundo ele, graças a essa medida, a recuperação dos débitos de devedores contumazes aumentou de 4% do valor devido, no fim de 2015, para 24% entre janeiro e outubro de 2017, correspondentes a de R$ 6 bilhões.

    Apesar de representar um avanço, o valor é ainda relativamente pequeno, ante o montante de cerca de R$ 300 bilhões da dívida tributária que estão efetivamente sendo cobrados agora. A dívida tributária total alcança cerca de R$ 1,7 trilhão, mas a maior parte desse valor está em discussão judicial ou sendo paga parceladamente.

    Fonte: VALOR ECONÔMICO

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