Elite do funcionalismo teme fim da estabilidade

    Brasil tem servidores de alto nível e serviços de baixa qualidade
    Valor Econômico
    Cristiano Romero
    16 de setembro de 2020 

    O tema mais espinhoso da reforma administrativa em tramitação no Congresso Nacional é o da estabilidade dos funcionários públicos no emprego. Mesmo que os parlamentares envolvidos nessa matéria assegurem que, se houver alguma “flexibilização” desse direito inscrito na Constituição, a mudança só valerá para quem ingressar no serviço público depois de aprovada e regulamentada a emenda constitucional enviada pelo governo ao parlamento, a elite do funcionalismo vê com enorme preocupação possíveis alterações na estabilidade.

    Para deixar bem claro, o uso da palavra “elite” aqui é desprovido de qualquer ironia, ao contrário do que estamos acostumados a ver no debate público brasileiro. Um dos significados de “elite”, talvez, o primeiro, é o que há de mais valorizado e de melhor qualidade em um grupo social.

    O Brasil, que já se chamou Ilha de Vera Cruz (além de Pindorama, Terra de Santa Cruz e Estados Unidos do Brasil), possui em algumas áreas do serviço público pessoal de qualificação que nada deixa a desejar quando comparado a seus pares em nações ricas. São reconhecidas ilhas de excelência – e o são por causa da alta qualidade de seus funcionários, recrutados por meio de concorridos concursos públicos – o Itamaraty, o Banco Central (BC), o Banco do Brasil, a Receita Federal, a Polícia Federal, o CNPq, o INEP, o TCU, o IBGE, o IPEA, algumas universidades federais, para ficar apenas em órgãos da União.

    Não podem deixar de ser mencionadas três carreiras que floresceram depois da promulgação da Constituição, em 1988 – os analistas de controle do Tesouro, os consultores legislativos e os gestores federais. Acompanhado de colegas do BC e do TCU, essa turma reúne a “nata” do funcionalismo público brasileiro.

    Não se tenha dúvida de que isso resulta do esforço dos constituintes de 1986 (ano em que foram eleitos para escrever a nova Carta Magna do país) em criar um Estado moderno, integrado por pessoas que, por meio de seu esforço pessoal e submetidos a concursos rigorosos (na maioria dos casos), conquistam o almejado emprego de funcionário público. Com algumas poucas exceções na lista mencionada, a maioria desses funcionários se sentiu atraída pelas carreiras públicas por causa dos salários, da estabilidade no emprego e de vantagens como aposentadoria integral e direito à paridade (reajuste salarial idêntico ao de servidores da ativa).

    Essa estrutura foi criada para implantar a nova Constituição, que, apesar de suas idiossincrasias, contempla, talvez, o primeiro grande projeto civilizador da história do país.

    Com todas as suas contradições, brasileiros de diversas origens e motivações nos encontramos no texto constitucional, daí, o espanto de alguns, digamos, com o tamanho da “conta”, e de outros, neste caso, milhões, com o fato de, decorridos 32 anos da promulgação, a Constituição “cidadã” ainda ter melhorado sua vida.

    A evidente falência do Estado brasileiro não deveria ser atribuída aos aspectos civilizadores da Carta Magna, afinal, o setor público da Ilha de Vera Cruz gasta tanto com tão poucos… Os exemplos são visíveis a olho nu. No Orçamento Geral da União, revela-se que, anualmente, o governo federal abre mão de um pouco mais de R$ 300 bilhões (cerca de 4% do PIB) pelas seguintes razões:

    1. O governo deixa de arrecadar uma fortuna em benefícios fiscais concedidos, por exemplo, a multinacionais da indústria automobilística, à classe média (por meio da indefensável dedução de gastos com saúde e educação da base de cálculo do Imposto de Renda), ao Simples Nacional (disfarce usado por empresas de médio e até grande porte para pagar muito menos imposto) e à Zona Franca de Manaus;
    2. A União oferece crédito subsidiado, principalmente, a grandes empresas.

    O Estado brasileiro ainda é proprietário de uma miríade de estatais (são mais de cem!) e de seis bancos federais. Se você, leitor, mora em Brasília, olhe para qualquer lado duas vezes. Na segunda vez, perceberá que o poder autóctone da capital federal é capaz de criar despesas sem passar pelo crivo, leitor, de seus representantes no Congresso.

    País de contrastes, o Brasil possui um funcionalismo de qualidade invejável, mas os serviços públicos acessados pela maioria desvalida é de péssima qualidade e, por isso mesmo, dificulta sobremaneira a implementação do projeto de nação inscrito na Constituição.

    Onde entra o funcionalismo nessa conversa? Ora, o gigantismo do Estado nas dimensões mencionadas – não se falou aqui em excesso de pessoal porque, de fato, não há – fez com que a sociedade, ao analisar todas as contas, chegasse ao serviço público.

    Seria interessante se a elite do funcionalismo analisasse o Estado brasileiro como um todo, e não apenas seu status quo, salário, estabilidade e que tais, e entrasse firmemente no debate de uma reforma administrativa. Essa elite, até por sua qualificada formação acadêmica, conhece melhor o Estado do que a maioria da intelectualidade nacional.

    Na semana passada, esta coluna questionou a estabilidade absoluta e foi bastante contestada por entidades representativas do funcionalismo. A coluna alegou que o expediente da estabilidade não impediu que a corrupção continuasse muito presente no Brasil.

    “Gostaríamos de lembrar que a corrupção é marca não apenas de políticos desonestos que desvirtuam instituições públicas, mas de agentes privados ativos num país caracterizado por uma das maiores concentrações de riqueza e de poder econômico do mundo”, manifestaram-se Bráulio Santiago Cerqueira, secretário-executivo do Sindicato Nacional dos Auditor es e Técnicos Federais de Fianças e Controle (Unacon Sindical), e

    Paulo Lino Gonçalves, Presidente do Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco

    Central (Sinal). “Destacamos que é falsa a premissa de que a estabilidade deve evitar todos os casos de corrupção, afinal se algo não é 100% eficaz, não significa que seja 100% ineficaz. A própria visibilidade da questão no Brasil se relaciona à democracia, à imprensa investigativa, à disputa política, mas também à independência política dos servidores do controle interno e externo, da transparência, das forças-tarefas da Polícia Federal com membros do Ministério Público, etc.”

    Fonte: Valor Econômico

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