Mundo em transição

    As relações internacionais entram num período de tensão e antagonismo entre a Rússia e potências ocidentais, por causa da anexação da Crimeia ordenada pelo presidente russo, Vladimir Putin, em meio à transição do poder global. Essa situação traz desafios também para o Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Os líderes desses emergentes, incluindo Putin, devem reunir-se em julho em Fortaleza.

    Depois da Guerra Fria, considerado um parceiro que podia fazer parte das soluções na governança global, Moscou agora é apontado como parte dos problemas. Os Estados Unidos e a Europa acusam a Rússia de causar a mais séria crise na Europa desde a queda do Muro de Berlim, em 1989, que simbolizava a divisão do mundo em dois blocos. E põe uma ameaça real para a ordem global. Ao redesenhar fronteiras, a Rússia pode inflamar disputas territoriais em torno do mundo. As relações da Rússia com potências ocidentais serão profundamente modificadas por algum tempo. Esse período de hostilidade alimentará percepções negativas de lado a lado. E, quando isso ocorre, cada um começa a se organizar em virtude dessas percepções.

    O ambiente está pesado, mas não é uma nova Guerra Fria, que foi uma luta ideológica total. A Rússia, hoje, é um país capitalista com regime político autoritário. O presidente dos EUA, Barack Obama, diminuiu, nesta semana, o peso da Rússia globalmente. Qualificou o país de potência regional, não mundial, e considerou que a influência de Putin e do país diminuíram na cena internacional desde o desmonte da União Soviética. A Casa Branca não vê hoje o arsenal militar russo como ameaça existencial para os Estados Unidos.

    A confrontação atual reflete um mundo em transição . Como avalia a German Marshall Fund (GMF), fundação que trabalha no reforço das relações EUA-Europa, no fim da Segunda Guerra as relações internacionais foram formatadas pelo conflito entre o Ocidente e o Leste, os EUA e seus aliados na Europa de um lado e a Rússia e o bloco comunista de outro. Com a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, essa situação começou a mudar. O peso da Otan, a aliança militar atlântica, diminuiu. A globalização, a crescente interconexão e a pior crise econômica dos últimos tempos provocaram transição política, econômica, social e tecnológica. Instituições tradicionais tiveram que se adaptar a novos atores, e velhos e novos conflitos – desde as guerras nos Bálcãs, os conflitos no Afeganistão e no Iraque, as revoltas no Oriente Médio e norte da África – alteraram alianças e parcerias no sistema internacional.

    Uma transição é o poder se deslocando do Atlântico para países do Pacífico, do Oeste para o Leste e do Norte para Sul. Economias da China, da Índia, do Brasil, da Turquia e outras continuam crescendo mais que as dos países industrializados. Poder político e militar invariavelmente acompanham o poder econômico. Exemplo: China e Índia estão montando uma Marinha de Guerra Oceânica (conhecida também pelo termo em inglês blue water navy , ou Marinha de água azul ), organizada e equipada de modo a ter a capacidade de operar distante das águas costeiras do seu país. São também os emergentes que vão continuar gastando mais em defesa.

    Outra transição, considerada mais sensível, é de uma ordem global previsível, bipolar durante a Guerra Fria, unipolar por um curto período em seguida, para uma ordem ainda indefinida. Mesmo os Estados mais fortes começam a questionar sua parte no sistema internacional e as potências emergentes se mostram zelosas com qualquer intrusão em sua soberania.

    A consequência da estratégia dos Estados Unidos e da União Europeia para isolar mais a Rússia é atrair os outros Brics , diz Stefan Meister

    Nesse contexto, para Craig Kennedy, presidente do GMF, a crise causada pela anexação da Crimeia reaviva o ambiente de nacionalismo como impulsionador nos assuntos internacionais em plena época da globalização. Em tempos de grande agitação, o perigo vem de poderes em declínio mais do que de poderes em ascensão.

    A ordem europeia do pós-Guerra Fria tinha pilares como inviolabilidade das fronteiras, resolução pacífica de disputas, não interferência nos assuntos internos, respeito dos direitos humanos e das minorias, nota Kadri Liik, do Centro Europeu de Relações Externas. Moscou nunca aceitou um novo princípio, que Otan e União Europeia verbalizaram nas suas estratégias de alargamento, de que as democracias europeias são livres para escolher suas alianças.

    Moscou é acusado de ter rasgado o tratado de 1994 que dava garantias das fronteiras à Ucrânia em troca do abandono por Kiev de seu arsenal nuclear. E, com a anexação da Crimeia, procura recriar linhas de divisão na Europa. Para Roberto Zoellick, ex-presidente do BancoMundial, a Rússia mudou fundamentalmente o conjunto de normas do pós-Guerra Fria sobre comportamento na cena internacional e isso vai ter ramificações no longo prazo. Sem falar da Transnistria (Moldávia), Ossétia do Sul e Abkhazia, vale lembrar que dos países bálticos até a Bulgária há numerosas etnias russas no interior de fronteiras da Otan e da União Europeia.

    Por seu lado, o professor Allen Lynch, do Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e da Universidade de Virgínia (EUA), lembra que em 1990 a barganha entre a Rússia e potências ocidentais visou tranquilizar Moscou de que não haveria expansão da Otan para o Leste Europeu em troca da unificação da Alemanha. Desde então, a aliança militar não só expandiu sua presença como agiu na guerra da Sérvia – e, no Iraque, nem sequer contou com o sinal verde das Nações Unidas.

    Do ponto de vista russo, as relações com os Estados Unidos, Europa e Otan são determinadas por equilíbrio de poder, não por interesse ou valores comuns , diz Lynch. Ele diz acreditar que, quando Putin constatou o colapso do regime na Ucrânia e a maior aproximação de Kiev com a União Europeia, decidiu dar mensagem aos ocidentais de que o futuro da Ucrânia não pode ser decidido sem a Rússia. Moscou está interessado apenas em sua área imediata de vizinhança, mas sua estrutura de relações é similar à da época da Guerra Fria.

    Como ocorre com frequência nas relações internacionais, os princípios são utilizados como convém por cada lado, para impor sua política de poder e diminuir a capacidade de influência do parceiro. A hipocrisia é ilustrada pelo Reino Unido, um dos que atacam o referendo russo na Crimeia, quando fez a mesma coisa nas Malvinas para tomar de vez o território da Argentina. Ou seja, o princípio de integridade territorial serve no caso da Ucrânia, mas não no das Malvinas.

    Da mesma forma, o princípio de autodeterminação usado pela Rússia serve para a Crimeia, mas não para a Tchetchênia, onde parte importante da população quer ser independente e Moscou não permite.

    Lynch lembra um episódio de 1900, quando o ministro russo da guerra, Alexei Kouropatkine, fez um relato da situação estratégica do império russo ao czar Nicolas II. Alertou que não havia nada a ganhar entrando em guerra, mesmo se Moscou saísse vitorioso. A questão é se Putin pode se permitir sair ganhando com a anexação da Crimeia.

    Primeiro, a tensão atual está fazendo renascer a Aliança Atlântica para enfrentar uma suposta ameaça de Putin e a desestabilização da Europa. Os Estados Unidos e a Europa querem reforçar os vínculos militares. A realidade até recentemente era de desmilitarização da Europa ocidental e remilitarização da Rússia. Países europeus não cessam de reduzir as despesas militares. Polônia, Hungria, República Tcheca e Eslovênia, sempre inquietos com a Rússia, começam agora a coordenar sua política de defesa. 

    Segundo, a negociação do acordo de comércio e investimentos entre os Estados Unidos e a União Europeia de puramente econômico virou agora geopolítico. Pode ser um estímulo para a exportação de gás americano para a Europa e reduzir a dependência europeia do gás russo. Há dois anos, Moscou cancelou a exploração de um grande campo de gás natural no mar de Barents, porque há muito produto no mercado e os preços caíram. A exploração no Ártico também é muito cara.

    Do ponto de vista econômico, a Rússia é um gigante vulnerável pela alta dependência de exportações de gás e petróleo e falta de diversificação. De acordo com reportagem do jornal Le Monde , o país já sofreu a saída de capital de US$ 470 bilhões desde janeiro. Segundo o vice-ministro russo da economia, Andrei Klepach, investidores temem sanções contra a Rússia. A tendência é sofrer mais. Investidores externos adiam projetos no país.

    Além disso, Putin é bastante popular, mas isso pode não durar muito. Thomas Gomart, diretor do Instituto Francês de Relações Internacionais (Ifri), lembra que mais da metade da população russa vive na parte ocidental, aspira ao modo de vida europeu, é muito integrada nas redes sociais e tem expectativa de outra coisa que não a conquista neo-imperial.

    Por outro lado, a ajuda econômica prometida pela UE e pelos EUA para a Ucrânia pode acabar indo em parte para os cofres russos. Moscou cobra da Ucrânia uma fatura atrasada de US$ 11 bilhões de compra de gás. Já ameaçou cortar o fornecimento, se Kiev não voltar a pagar a conta.

    A China não está contente com o que está acontecendo, ainda mais que tem o Tibete e fica com medo desse tipo de separatismo

    Quanto a isolamento diplomático, a Rússia de Putin também ficou na mesma situação em 2008 durante a guerra contra a Geórgia. Ser excluído do G-8 não significa muito, porque é uma entidade com cada vez menos relevância. No G-20, espécie de diretório econômico do planeta, Moscou tem sua presença defendida pelo Brasil, pela China e pela Índia contra a Austrália, que gostaria de evitar Putin na cúpula de Brisbane em novembro.

    Apesar da hostilidade atual, equilíbrio de poder não depende só de mais armas e, sim, da importância que cada um dá a determinado problema, diz Lynch. O que é mais importante para os Estados Unidos: a Síria estabilizada ou a Crimeia? O Irã com seu programa nuclear sob controle ou a Crimeia? O futuro nuclear da Coreia do Norte ou a Crimeia? E nada disso pode ser controlado sem a cooperação da Rússia , diz.

    Depois da anexação da Crimeia, a Rússia terá o primeiro palco na cena internacional na cúpula do Brics – do qual é sócio com Brasil, Índia, China e África do Sul. Será em julho, em Fortaleza, e pode ser um teste para sua validade geopolítica como grupo.

    A consequência da estratégia dos EUA e da UE para isolar mais a Rússia é atrair os outros Brics , avalia Stefan Meister, especialista do Conselho Europeu de Relações Exteriores. Um diplomata latino estima que as cobranças já começam.

    Para Alfredo Valladão, professor do prestigiado Institut de Science Politique de Paris, o Brics fica muito mal no cenário atual. Putin já exagerou agradecendo apoio da China. Em reunião de emergência do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a China não ficou com a Rússia e não usou seu poder de voto, preferindo se abster. A China não está contente com o que está acontecendo, ainda mais que tem o Tibete e fica com medo desse tipo de separatismo. 

    A Índia tem laços mais fortes com Moscou, seu principal fornecedor de armas. As relações econômicas com o Brasil são mais modestas. Para Valladão, a nova tensão mundial desse tipo tira muito espaço de países como o Brasil. Se fica em cima do muro, perde qualquer possibilidade de influência. Se sai do muro, pode chocar com um outro e ser obrigado à posição por outro , afirma.

    Na verdade, até agora o Brics é mais uma sigla forte que aproveitou o conceito de um economista do Goldman Sachs, Jim O Neill. Nunca se reuniu para estabelecer agenda comum. Mas a situação da Rússia, em perda de credibilidade internacional, enfraquece a posição do Brics como grupo. Há uma reação forte contra a Rússia e isso tem efeito sobre como o Brics é visto internacionalmente. Certo ou errado, é questão de percepção , afirma uma alta fonte diplomática.

    Para outro importante interlocutor no grupo do Brics, a cobrança que já ocorre para o Brasil se posicionar quer dizer que o país deveria seguir americanos e europeus. Mas a lógica brasileira é um pouco diferente. O Brasil tem posição, sim. Defende dialogo, cooperação, entendimento.

    O momento é grave porque nem EUA, nem UE, nem Moscou têm interesse na degradação da situação, mas tampouco oferecem sinal de desescalada da confrontação , diz Thomas Gomart. É a natureza da relação política com a Rússia que está em jogo. A Rússia é um dos principais parceiros econômicos da Europa. O comércio Rússia-União Europeia é dez vezes maior do que o comércio Rússia-Estados Unidos.

    Se até a cúpula dos Brics, no Ceará, Vladimir Putin continuar fazendo o que potências ocidentais chamam de desestabilização da Europa , por exemplo ameaçando outros territórios com minorias russas na Bulgária, Moldávia ou Geórgia, a tensão estará no máximo. Sanções dos EUA e da União Europeia mais duras poderão ser aplicadas. E isso afetará terceiros países trabalhando com a Rússia.

    Se sanções econômicas e financeiras, como no caso do Irã, forem aplicadas, um Banco ou empresa em Xangai, Belo Horizonte ou Mumbai em certo momento vai trabalhar com o sistema financeiro americano ou europeu, e o risco de operar com os russos vai crescer , diz François Heisbourg, presidente do Instituto Internacional para Estudos Estratégicos (IISS, na sigla em inglês) e do Geneva Centre for Security Policy.

     

    Fonte: Valor Econômico

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