Um bode na cozinha tirou a atenção do elefante que está na sala. O malposto debate sobre autonomia do Banco CENTRAL, assunto de grande importância para a eficácia do controle da inflação mas de pouca compreensão popular, desvia a discussão, na campanha eleitoral, de outros temas espinhosos para os candidatos e para os eleitores: a necessidade de o próximo governo, qualquer que seja, ter que adotar medidas impopulares para recolocar a economia, sobretudo a política fiscal, nos trilhos.
Nenhum dos candidatos explicou aos eleitores o que isso vai representar. Mas é cada dia mais evidente que, desta vez, o governo terá que cortar despesas primárias para o setor público voltar a gerar superávit de 2,5% a 3% do PIB. Até aqui, o ajuste fiscal sempre foi feito pelo aumento da receitas, processo que se esgota.
Governos só fazem ajustes impopulares quando a hipótese de não fazer deixou de existir , comentou um interlocutor petista para quem esse momento chegou..
Campanha passa ao largo dos grandes problemas
Os presidenciáveis não falam, mas economistas ligados às candidaturas avançam no esquadrinhamento das receitas e despesas públicas, na radiografia da deterioração fiscal patrocinada pelo governo Dilma de 2012 para cá, nas reformas inadiáveis, no tamanho dos aumentos dos preços represados e nas propostas que vão sugerir assim que o resultado das urnas selar o novo presidente da República para o período 2015-2018.
Aécio Neves chegou a mencionar que não se furtará de tomar medidas impopulares porque sabe muito bem que elas serão necessárias para repor um mínimo de ordem nas contas públicas. O PT reagiu, atribuindo ao candidato do PSDB um conjunto de más intenções. A estratégia da campanha do PT é negar os problemas. Temos uma eleição para ganhar , explicam assessores da presidente Dilma Rousseff. Marina Silva, candidata pelo PSB, e Aécio triscaram em alguns dos temas de forma genérica.
Há medidas inevitáveis, mas insuficientes, como uma boa reformulação das regras de acesso ao abono salarial e ao seguro-desemprego. O pagamento do abono mais do que dobrou entre 2002 e 2014, de 0,09% do PIB para 0,19% do PIB. O aumento real do salário mínimo não explica a duplicação e há questionamento sobre a própria existência do programa – que paga um salário mínimo por ano para quem recebe até dois salários mensais – já que hoje há mecanismos mais eficientes de transferência de renda aos mais pobres.
O crescimento do seguro-desemprego é outro mistério em um país que vive situação de quase pleno emprego. O gasto com o seguro chegou a 0,65% do PIB no ano passado, saindo de 0,40% do PIB em 2002 quando o desemprego era de 12,2%. Para este ano a expectativa é que a despesa recue um pouco, para 0,61% do PIB.
O fato é que o próprio ministro da Fazenda, Guido Mantega, chamou a atenção para a elevação desses gastos no fim de 2013 e anunciou que tornaria ambos os programas mais restritivos. Como isso só pode ser feito por lei, o governo desistiu de mexer.
Pensão por morte é outra distorção já fartamente diagnosticada. A despesa com esse benefício é, aqui, muito superior à de países similares e à média da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
O gasto com o funcionalismo da União foi a única despesa que teve queda como proporção do PIB de 2002 para cá, saindo de 4,81% para 4,2% do PIB. A correção dos salários dos servidores, na base de 5% ao ano, vigora até 2015 e a tendência é prorrogar essa política por mais tempo.
Cálculos feitos por economistas indicam que é possível economizar até 0,5% do PIB com cortes nos gastos dos programas citados mais a prorrogação da política de reajuste da folha de salários.
Outra questão posta sobre a mesa é a da reforma da Previdência Social e a pressão política para acabar com o fator previdenciário. O próprio governo tem propostas de reforma da Previdência com imposição de uma idade mínima para aposentadoria e não se vislumbra mais quatro anos sem tocar nesse assunto.
A redução do custo de carregamento dos créditos do Tesouro aos bancos públicos é uma discussão no interior da campanha de alguns candidatos. Para tanto, será preciso aumentar a taxa de juros de Longo Prazo (TJLP), de 5% ao ano, para patamar mais próximo da Selic (11% ao ano), reduzindo, assim, o subsídio dos financiamentos do BNDES. Essa é uma iniciativa que pode diminuir em 0,5 ponto percentual o superávit primário requerido para estabilizar a dívida bruta como proporção do PIB.
Outro 0,3% do PIB pode ser obtidos com a liberalização dos preços administrados e o retorno da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) sobre a gasolina. As desonerações da folha de salários seriam eventualmente revistas, caso Aécio ou Marina vençam as eleições. Dilma comprometeu-se em mantê-las.
Ao recompor os fundamentos de uma política fiscal sólida, capaz de estabilizar a trajetória da dívida, o próximo governo estará contribuindo com a recuperação do crescimento econômico que, por si só, teria impacto positivo de pelo menos outros 0,5% do PIB no superávit primário recorrente.
Estima-se que hoje o superávit primário recorrente – produzido sem receitas extraordinárias – é da ordem de 0,5% do PIB. Para se chegar a meta de 3% do PIB em dois anos, como sugeriu Arminio Fraga em entrevista ao Valor, ou para cumprir o primário de até 2,5% do PIB que consta da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2015, o ajuste nas contas públicas não será trivial, ainda mais em uma economia que não cresce ou cresce muito pouco.
A hipótese de não fazer nada muito relevante, apenas arremedos aqui e ali, é temerária. Pode desembocar em rápida deterioração da dívida/PIB, desvalorização cambial, aumento dos juros, perda do grau de investimentos e daí por diante.
A fatura da experimentação de uma nova matriz macreconômica chegou mais cedo do que se esperava.
Claudia Safatle é diretora adjunta de Redação e escreve às sextas-feiras
E-mail: claudia.safatle@valor.com.br
Fonte: Valor Econômico