DARO PIFFER
Secretário-geral do Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate) e presidente do Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central
O quarto item da justificativa da PEC 241/16, que cria teto para os gastos públicos, traz um argumento poderoso, que cativou de imediato a simpatia da grande imprensa e o apoio de formadores de opinião pública: a de que a raiz do problema fiscal do governo federal está no crescimento acelerado da despesa pública primária, que variou 51% acima da inflação, só no período de 2008 a 2015, enquanto a performance da receita no mesmo período foi de apenas 14,5%. “Torna-se, portanto, necessário estabilizar o crescimento da despesa primária, como instrumento para conter a expansão da dívida pública.”
Ao apresentar esses dados de maneira binária, sem contexto, o ex-governo interino de Michel Temer tentou jogar nas costas do funcionalismo público federal e das rubricas de saúde e educação a responsabilidade pelo desajuste financeiro da União. O artífice de toda essa retórica – o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles – quer fazer a sociedade crer que a medida “essencial para recolocar a economia em trajetória de crescimento, com geração de renda e empregos” é congelar o salário do servidor público, sobretudo do Executivo, e desvincular da receita as despesas com saúde e educação.
O que o ministro da Fazenda não conta é que nenhuma coisa nem outra é a vilã da diferença de 42 pontos percentuais verificada entre a evolução da despesa e da receita, usadacomo exemplo na justificativa da PEC 241/2016. Não é preciso o uso de matemática financeira para perceber que existe uma contradição nesse argumento. Aplicando o raciocínio da lógica, se considerarmos que a despesa é fator X, a receita é fator Y e que o percentual dos gastos com educação e saúde é fator Z, logo se deduz que o aumento da diferença entre X e Y não decorre do fator Z, justamente porque ele está rigorosamente atrelado percentualmente à evolução de Y.
Então, se não podemos responsabilizar a educação e a saúde pelo desajuste nas contas públicas, talvez seja a despesa com o funcionalismo a grande culpada pelo estado das coisas. Só que, mais uma vez, a premissa está eivada de distorções. Tomando como base o ciclo do governo de Fernando Henrique Cardoso (de 1995 a 2002), os gastos com o funcionalismo correspondiam a 55% da receita da União. Hoje, essa correlação é de apenas 40%, 15 pontos percentuais a menos. Ora, se os custos com o funcionalismo caíram em relação à receita, não se pode atribuir ao servidor público a culpa pela crise fiscal do país.
Se esses dois aspectos – funcionalismo e desvinculação de receita -, pedras angulares dessa PEC, não causaram o desequilíbrio das contas públicas, quais foram os fatores do desordenamento fiscal? Se forem sinceras as motivações do novo governo de neutralizar a verdadeira fonte do desajuste orçamentário, Temer e Meirelles serão obrigados a se deparar com o óbvio: as despesas foram infladas ao longo desses anos por uma forte e continuada política de endividamento do Estado, a um custo elevado para o país. Um simples aumento de um ponto percentual na taxa Selic, por exemplo, provoca um custo fiscal entre R$ 15 bilhões e R$ 20 bilhões.
As despesas com juros acumuladas, de junho de 2014 a junho de 2015, foram da ordem de R$ 420 bilhões. Nada menos de 45% do orçamento da União é para a rolagem da dívida e o pagamento dos juros. Em junho de 2015, com o país já em recessão, a relação dívida/PIB ficou em 63%, o pior resultado da história. No mesmo mês de 2014, estava em 55% do PIB. Os servidores públicos não estão em dissonância com os anseios da sociedade. O funcionalismo já aceitou dar sua cota ao acordar um reajuste salarial muito abaixo da inflação. Mas o que se vê nas intenções anunciadas pelo então governo interino são ações mais contundentes, aproveitando o desequilíbrio fiscal para tomar medidas que minimizam o Estado, em especial os programas que promovem o bem-estar.
É preciso inverter essa lógica para ir à raiz do problema. Os cortes no orçamento e a política de juros altos não são utilizados para reduzir os gastos do Estado e torná-lo mais eficiente. São, no fundo, mecanismos para facilitar a descomunal transferência de renda para uma classe que sempre expropriou o Estado. Estamos diante, enfim, de uma desonestidade intelectual. Se houvesse um debate franco de ideias, se discutiriam as reais causas do desajuste fiscal, que, colocadas em perspectiva, têm origem numa dívida interna de R$ 3 trilhões e nos descaminhos do dinheiro público. A Lava Jato está aí para provar isso.