Os ciclos financeiros e o Brasil (Valor)

    Por Armando Castelar Pinheiro

    No domingo passado (29/6/14), o BIS (bank for International Settlements) divulgou seu relatório anual com o título de “Time to step out of the shadow of the crisis”. Vale a pena ler, pela forma como analisa a crise internacional e pelo bom trabalho de pesquisa que o sustenta.

    O relatório traz três mensagens principais. Primeiro, os ciclos financeiros têm vida própria, até certo ponto independente da dos ciclos econômicos. Eles são também mais longos (15 a 20 anos, contra 1 a 8 anos nos ciclos econômicos). Em grande parte, na visão do BIS, as últimas crises financeiras, em especial a atual, resultaram de as autoridades manejarem os instrumentos de política econômica com foco no ciclo econômico, desconsiderando seu impacto no ciclo financeiro. A crítica destina-se, em especial, à atuação do Fed sob a chefia de Alan Greenspan.

    Segundo, as autoridades econômicas nos países desenvolvidos estão repetindo o mesmo erro ao deixar as condições monetárias muito frouxas por tempo demais, para acelerar a alta do PIB nominal, sem atentar para seu efeito no ciclo financeiro. A liquidez global está muito alta há muito tempo, e os juros e a volatilidade no preço dos ativos baixos demais. Isso tem levado à assunção de riscos e adiado o ajuste nos níveis de endividamento global.

    A liquidez global está muito alta há muito tempo, e os juros e a volatilidade no preço dos ativos baixos demais

    Nesse sentido, o BIS recomenda que se comece a normalizar as condições monetárias para se evitar um novo ciclo de expansão financeira, seguido de nova crise. Esta é a recomendação que gerou mais polêmica. Martin Wolf chamou isso de tolice em seu artigo de quarta no Valor. Seu ponto é que isso geraria uma recessão, o que dificultaria o ajuste financeiro.

    Janet Yellen teve uma reação mais construtiva, argumentando que a resposta correta seria apertar a regulação macro-prudencial. O BIS concorda, mas lembra que o aumento da desintermediação financeira, via maiores emissões de títulos corporativos no mercado internacional, reduz a eficácia dessa medida. No todo, advoga que as medidas de regulação prudencial necessitam da ajuda da política monetária.

    A terceira mensagem do BIS é que diversas economias emergentes experimentaram um boom financeiro nos últimos anos, em grande parte fruto das políticas expansionistas dos países ricos. Em especial, o rendimento real dos títulos públicos dos emergentes caiu de 4% no início de 2005 para 1% em maio de 2013. Essas economias correm o risco de amargar sua própria crise financeira em um horizonte de poucos anos. Os países asiáticos parecem especialmente expostos, com destaque para a China, mas o Brasil também é citado diversas vezes com preocupação.

    O BIS foca sua análise em três indicadores principais: a evolução da relação crédito/PIB, dos preços de imóveis e do comprometimento da renda com o serviço da dívida. No Brasil, esses três indicadores subiram bastante nos últimos anos, ainda que menos mais recentemente.

    A razão crédito bancário / PIB aumentou à taxa de 3,5 pontos percentuais (pp) ao ano entre os finais de 2004 e 2012. Em 2012, em especial, com o BC praticando juros muito baixos, essa razão saltou 4,8 pp. Desde então, ela se expande ao ritmo de 1,6 pp ao ano. O destaque mais recente tem sido o crédito imobiliário, que subiu de 1,66% do PIB em maio de 2007 para 8,81% do PIB sete anos depois; mais de 1% do PIB ao ano, sendo que no último biênio esse ritmo acelerou para 1,46% do PIB ao ano.

    A expansão do crédito imobiliário ajuda a explicar a forte alta no preço dos imóveis. Tomando a média simples do índice Fipe-ZAP para São Paulo e Rio de Janeiro, e deflacionando pelo IPCA, vê-se que a valorização dos imóveis superou por larguíssima margem o aumento da massa salarial. Na comparação com o mesmo mês do ano anterior, o pico de alta se deu em junho de 2011 (27,7%, em termos reais), desacelerando desde então para um aumento de 6,3% em maio de 2014, ainda uma subida forte.

    Com mais dívidas, as famílias passaram a comprometer mais da sua renda com juros e amortizações: saindo de 15,6% em janeiro de 2005 para um pico de 22,9% em junho de 2012, decaindo levemente desde então. Em março deste ano, último dado disponível, estava em 21,4%.

    Essa desaceleração no crédito e no preço dos imóveis é um bom sinal, assim como o é a alta nos spreads bancários. Mas a situação financeira ainda é preocupante. Primeiro, porque o boom não acabou. Segundo, pois a expansão de crédito nos últimos anos tem sido quase integralmente feita pelos bancos públicos, que não parecem reagir a incentivos de mercado.

    Há um risco, portanto, de se cair num quadro de dominância financeira: as autoridades quererem fazer um ajuste, mas não poderem: uma alta da TR e da TJLP poderá elevar à inadimplência. Mas, se não o fizerem, não só terão um custo fiscal considerável, como terão de racionar a oferta de crédito, visto que com juros baixos a demanda por crédito direcionado continuará crescendo. Algo semelhante pode ocorrer com a Selic. Assim, quanto mais cedo se agir, menor o problema mais à frente.

    Armando Castelar Pinheiro é coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV e professor do IE/UFRJ. Escreve mensalmente às sextas-feiras.

     

    Fonte: Valor Econômico

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