Previdência: parecer em favor de privilégios

    DOCUMENTO ENCAMINHADO AO SUPREMO PELA AGU AFIRMA QUE CONGRESSISTAS TÊM A PRERROGATIVA DE ORGANIZAR REGIME PRÓPRIO DE APOSENTADORIAS. TESE CONTRARIA ARGUIÇÃO DO EX-PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA, RODRIGO JANOT, PARA QUEM SISTEMA É INCONSTITUCIONAL
    Autor: ALESSANDRA AZEVEDO

     

    Um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) encaminhado ao Supremo Tribunal Federal (STF) fragilizou o discurso do governo de que a Reforma da Previdência ‘não vai manter privilégios’. Na contramão de declarações da equipe econômica, que pretende extinguir o regime atual dos parlamentares e colocar todos dentro dos limites do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), o documento defende a legalidade de os congressistas manterem as regras diferenciadas, que incluem benefícios muito mais vantajosos que os dos demais trabalhadores, com aposentadorias integrais que podem chegar a até R$ 33,7 mil – pelo INSS, o teto atual é de R$ 5.531,31.

    Nos bastidores do Congresso, o parecer é visto como uma forma encontrada pelo governo para agradar a deputados e senadores na tentativa de emplacar a reforma e angariar apoio para barrar a segunda denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República contra o presidente Michel Temer, além da liberação de emendas parlamentares.

    O parecer da AGU foi uma resposta à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) enviada à Corte em agosto pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que classificava o regime previdenciário dos parlamentares como ‘inconstitucional’, por, entre outros motivos, contrariar os princípios ‘da isonomia, da moralidade e da impessoalidade’.

    Com entendimento diferente, a advogada-geral da União, Grace Mendonça, afirmou, no parecer, que ‘o plano de seguridade social dos parlamentares encontra-se entre as prerrogativas constitucionais do Poder Legislativo, especialmente no que toca à sua auto-organização’. Ela argumentou também que a Constituição não veda a criação de regimes previdenciários específicos nem limita a existência deles aos modelos que vigoram hoje.

    Incoerência

    O relator da matéria no STF é o ministro Alexandre de Moraes, que não tem prazo para decidir se concede a decisão provisória pedida por Janot antes do julgamento do mérito do processo. O pedido da medida cautelar foi justificado para evitar que ex-parlamentares continuem recebendo benefícios indevidos, o que resulta em prejuízo aos cofres públicos, na visão do ex-procurador-geral.

    A AGU esclareceu, em nota, que, ‘independentemente da tramitação de qualquer proposta de alteração normativa sobre o tema, tem a obrigação legal de representar pela conformidade jurídica dos atos impugnados’. Segundo a instituição, ‘a iniciativa de defesa do atual regime de previdência de parlamentares decorre de competência estabelecida pela Constituição Federal e trata-se de atuação ordinária e recorrente, principalmente junto ao STF’.

    Com ou sem intenção política, ao enviar o documento, o governo cria inconsistências no discurso, já que o posicionamento da equipe econômica tem sido de que não deve haver regras diferenciadas para políticos. Tanto o secretário de Previdência Social do Ministério da FazendaMarcelo Caetano, quanto outros técnicos do órgão já se manifestaram favoravelmente à equiparação das regras entre políticos e demais trabalhadores e funcionários públicos.

    A incoerência pode abrir brecha para que os parlamentares entendam que não serão tocados pela Reforma da Previdência.

    Desigualdade

    Para a advogada especialista em direito previdenciário Jane Berwanger, o parecer é ‘incoerente’ também pelo momento em que foi enviado. ‘O governo afirma repetidamente que a previdência é deficitária, mas defende a manutenção de um sistema totalmente desigual’, disse. ‘É muito estranho a AGU sustentar essa situação, querendo manter um sistema que, além de extremamente deficitário e desproporcional, é contrário à Constituição’, avaliou.

    Entre as críticas da especialista está o fato de que os parlamentares podem averbar tempo de outros mandatos e de contribuição ao INSS, em uma espécie de ‘sistema híbrido’ ao qual nenhum outro trabalhador tem direito. Para o cientista político Murillo de Aragão, da Arko Advice, esse é um tema que pode ser usado como moeda de troca, ‘mas não é tão decisivo’. Isso porque parte dos parlamentares defende que haja mudança também nos próprios regimes previdenciários.

    Corporações ampliam resistência

    Para o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel, um dos maiores especialistas em tributação do país, a Reforma da Previdência não é uma questão local ou nacional. ‘É mundial’, disse ele ontem em entrevista ao programa CB.Poder, do Correio Braziliense e da TV Brasília. Diante da mudança na demografia, com o rápido envelhecimento da população, todos os países estão sendo obrigados a promoverem ajustes em seus regimes de aposentadoria. Para ele, quanto mais o Brasil demorar para promover alterações no sistema, mais pesada será a conta paga pela sociedade.

    A reação contrária às mudanças, segundo o ex-secretário, é natural. Mas, no Brasil, a gritaria é liderada pelas corporações, por grupos de privilegiados, uma vez que a grande maioria dos trabalhadores já se aposenta por idade e recebendo salário mínimo. Esses grupos de privilegiados acabam manipulando as massas.

    ‘O problema de alguns não é falta de informação, é excesso. As pessoas não querem renunciar a determinados privilégios. E como não querem renunciar, evidentemente lutarão pela manutenção desse privilégio a qualquer custo. É muito difícil você convencer uma pessoa quando desse convencimento resulta alguma perda financeira’, explicou.

    Sistema tributário

    Para Everardo Maciel, o sistema de impostos no Brasil não precisa de uma reforma ampla, diferentemente do que argumentam outros especialistas na área. Bastariam ajustes em alguns pontos significativos. Seriam necessárias mudanças, por exemplo, para diminuir a litigância, que resulta, hoje, em 80 milhões de processos na Justiça. ‘Se não entrasse mais nenhum nos próximos anos, uma hipótese falsa, levaria 11 anos para acabar com o estoque.’

    Refis deve ser votado

    O governo foi contra a própria equipe econômica ao aceitar negociar o texto do programa de refinanciamento de dívidas (Refis), que caducaria em 11 de outubro, com adesões até sexta-feira. Após ter sido revisada, a medida provisória, de autoria do deputado Newton Cardoso Júnior (PMDB-MG), deve ser votada ainda hoje pelo plenário da Câmara, com novas concessões por parte do governo. O relator anunciou, na noite de ontem, que o texto está pronto para ser pautado.

    As mudanças anunciadas até o momento foram negociadas com ministros e lideranças políticas do governo nos últimos dias. Entre as alterações está a diminuição do desconto no valor da dívida que contribuintes terão que pagar ao aderir ao Refis, que será, segundo Newton Cardos Júnior, de até 70% sobre o valor total, para pagamentos feitos à vista. Enquanto o texto original do governo previa desconto de 50%, o parecer aprovado na comissão especial sugeria 99%. No caso de quem preferir parcelar, haverá descontos de 50%, em 145 meses, e 25%, em 175 meses – o governo propunha 40% nos dois prazos.

    Ainda de acordo com o deputado, o prazo de adesão ao programa também será ampliado. Pelo acordo, contribuintes poderão aderir ao Refis até 31 de outubro, e não mais até sexta-feira. As mudanças negociadas devem reduzir a arrecadação prevista com o programa, de R$ 13 bilhões para R$ 10 bilhões, calcula Cardoso Júnior. Se o parecer fosse aprovado sem negociação, a arrecadação seria de R$ 500 milhões, muito abaixo da previsão inicial. Com as adesões feitas até agosto, o governo calcula ter conseguido R$ 5,4 bilhões.

    Embora o governo tenha cedido em vários pontos em troca de apoio no Congresso, o relator considera que quem mais abriu mão foram os parlamentares. ‘Queriam que esse assunto caducasse. Mas não é a Fazenda nem a equipe econômica que vai comandar a votação na Casa’, disse. A MP ainda precisa passar pela Câmara e pelo Senado antes de ser sancionada pelo presidente Michel Temer. Como o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, chega hoje a Brasília, após viagem a Londres, o texto ainda pode ser alterado no plenário. Ontem, Meirelles afirmou que entrará ‘diretamente no processo de negociação do Refis’. (AA)

    Colaborou Rosana Hessel

    Fonte: Valor Econômico

    Matéria anteriorMinistérios do Planejamento e da Fazenda vão liberar uso de precatório como receita
    Matéria seguinteReceita identifica sonegação da contribuição previdenciária em mais de 46 mil empresas