Reação em cadeia

    RENATA TRANCHES

    Depois da cobrança brasileira, ontem foi a vez de França e México reagirem fortemente às denúncias de espionagem praticada pelos Estados Unidos contra países aliados. Paris convocou o embaixador americano para explicar porque mais de 70 milhões de comunicações francesas foram bisbilhotadas pelo serviço secreto americano, como denunciou o jornal Le Monde. O governo mexicano determinou uma investigação sobre a revelação feita pela revista alemã Der Spiegel de que o e-mail do ex-presidente Felipe Calderón (2006-2012) foi invadido pela Agência de Segurança Nacional (NSA) americana. Em sua defesa, a Casa Branca argumentou que a prática é comum e que “todas as nações fazem operações de espionagem”.

    Como nos episódios anteriores, as denúncias se basearam em documentos vazados pelo ex-colaborador da NSA Edward Snowden, asilado temporariamente na Rússia, após demonstrar o amplo esquema de espionagem americano que não poupa nem governos amigos. Segundo o jornal francês, em um período de 30 dias (entre dezembro de 2012 e janeiro de 2013), a NSA realizou 70,3 milhões de gravações de dados telefônicos de franceses. A França já tinha aparecido em denúncias anteriores, mas foi a primeira vez que Paris convocou o embaixador americano para explicações — uma dura resposta, na linguagem diplomática. Hoje, o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, desembarca em Paris, onde deve debater o tema com o colega Laurent Fabius. O ministro do Interior francês, Manuel Valls, considerou as revelações “chocantes”.

    Assim como fez com a presidente, Dilma Rousseff, o líder americano, Barack Obama, ligou ontem para o francês, François Hollande. “Os presidentes falaram das recentes revelações da imprensa, algumas das quais distorceram nossas atividades, e outras destacam dúvidas legítimas de nossos amigos e aliados sobre a forma como nossos programas (de Inteligência) são realizados”, afirmou a Casa Branca, por meio de um comunicado. Mais cedo, Caitlin Hayden, porta-voz da NSA, comentou as queixas. “Já deixamos claro que os EUA recolhem informações de inteligência no exterior do mesmo modo que todos os países o fazem.”

    Na opinião de Stéphane Monclaire, cientista político da Universidade de Paris/Sorbonne, o que assusta é o número de interceptações. “Os governos sempre espionaram e continuarão fazendo isso. A questão agora é a ampla escala”, afirmou, em entrevista ao Correio (Leia nesta página). O especialista explica que, para chegar a esse número — de mais de 70 milhões —, muitas pessoas que nada têm a ver com terrorismo estiveram sob os olhos da NSA. Ele lembra que a ameaça dos extremistas era o principal argumento do governo americano para manter a vigilância. Para Monclaire, houve uma invasão de privacidade sem precedentes. “Snowden sempre falou que procurou facilitar o desenvolvimento e o aprofundamento da democracia. Suas revelações demonstraram que a liberdade pessoal está ameaçada”, admitiu.

    Semelhanças
    Como no caso brasileiro, o episódio envolvendo a França inclui empresas, o que demonstra o interesse comercial e econômico por trás da prática. Segundo Monclaire, a tendência é de que os países, incluindo a França, tentem desenvolver, entre a opinião pública, uma resistência a essas invasões e capitalizem a indignação popular para obter posições melhores em negociações de acordos bilaterais com os EUA. Na primeira vez que cidadãos franceses apareceram como alvos da NSA, em julho, Paris manifestou a intenção de aplicar uma suspensão temporária nas negociações entre a União Europeia e os EUA, a fim de estabelecer um acordo de livre-comércio, discutido atualmente.

    No México, além de determinar uma investigação, o governo condenou e exigiu uma explicação dos EUA e de seus aliados. “O governo do México reitera a categórica condenação à violação da privacidade das comunicações das instituições e dos cidadãos mexicanos”, afirmou o comunicado da chancelaria. Segundo a Der piegel, a NSA “espionou sistematicamente, e durante anos, o governo mexicano”.

    Um dos alvos foi o ex-presidente Calderón, cujo e-mail teria sido invadido enquanto ele ocupava o cargo. Em setembro, a Rede Globo já havia revelado que os EUA espionaram as comunicações do então candidato e atual presidente Enrique Peña Nieto.

    Ontem, durante a 69ª Assembleia Geral da Sociedade Interamericana de Imprensa, em Denver (EUA), o jornalista Glenn Greenwald, que tem denunciado o rastreamento eletrônico, disse que “todos os países da América Latina foram alvo de espionagem”.

    >> entrevista Stepháne Montclaire

    “Os EUA não têm aliados”

    A amplitude da espionagem na França chocou o país, mas deu fôlego para o presidente, François Hollande, envolvido em questões polêmicas, na opinião de Stéphane Monclaire, cientista político da Universidade de Paris/Sorbonne. Especialista em temas ligados ao Brasil, o professor disse crer que a França não deverá, inicialmente, apoiar abertamente a iniciativa brasileira por um projeto nas Nações Unidas de governança global da internet, apresentado pela presidente Dilma Rousseff .

    Qual deve ser o impacto das revelações para o governo de François Hollande?
    O presidente François Hollande está muito contente com a polêmica. Ela fez tirar o foco das atenções à política de imigração. A atenção da política francesa estava na discussão sobre a (deportação) da menina (Leonarda Dibrani), um caso complicado, mas emblemático, pela dificuldade de se controlar o fluxo de imigração. François Hollande cometeu vários erros nesse episódio e sua imagem saiu muito prejudicada. De repente, para sua sorte, a história do Le Monde teve ampla repercussão. Para ele, foi um pouco de oxigênio depois de tanta asfixia no fim de semana.

    No Brasil, o impacto foi nas pesquisas de opinião…
    As coisas aconteceram quando a presidente Dilma Rousseff estava um pouco acuada pelas manifestações de rua. No caso do Brasil, a presidente fez alguns discursos com efeitos verbais e anulou uma viagem, que, por definição, não renderia muito. Foi uma maneira de proclamar o incômodo, mas é para a opinião pública ver. Ela pode satisfazer internamente a opinião pública, que não entende muito das relações internacionais. Mas o que fazer a mais? Com toda a certeza, esses países (Brasil e França) não têm um sistema de espionagem tão poderoso como os EUA. A única resposta é invocar a bandeira da soberania.

    A França pode apoiar a iniciativa do Brasil na ONU para a governança da internet?
    Ainda não. O primeiro reflexo será o de tentar dar uma resposta europeia. Seria a oportunidade de a União Europeia ter uma política externa e uma posição firme sobre o tema. O normal seria as autoridades francesas anunciarem que vão falar com os parceiros no bloco para tentarem encontrar uma regulamentação, dentro da UE, sobre a interceptação de telefonemas e e-mails. Se a UE estabelecer uma regulamentação, Snowden terá vencido. Será um aprofundamento da democracia. Isso vai impedir a invasão pelos EUA? Acho que não. A primeira potência do mundo não é só o país que detém o maior PIB, mas o que controla a capacidade de antecipar o comportamento de outras nações, de empresas e de governantes.

    E os demais países parecem longe de ameaçar essa liderança?
    A gente só tem as revelações do Snowden. O que fazem Rússia, China, Israel e Irã, entre outros, não temos informações. Talvez façam coisa muito parecida ou até mais séria. Em função do avanço tecnológico de que os EUA demonstraram, não podemos subestimar o que podem fazer os outros governos. O funcionamento da NSA é um absurdo. Grande parte do que é interceptado é sem valor. Essa maneira de espionar aliados demonstra que os EUA não têm aliados. Eles suspeitam do mundo inteiro.

    E como fica a imagem dos EUA?
    Para a imagem dos EUA, isso não é bom. Eles foram capazes de desenvolver uma tecnologia incrível que revolucionou a comunicação no mundo, mas estão pervertendo o sistema para vigiar os cidadãos do mundo todo. (RT)

    Memória

    De olho na Petrobras

    Documentos divulgados por Edward Snowden indicam que o governo brasileiro e a Petrobras foram espionados. Em julho, Glenn Greenwald, então colunista do jornal britânico The Guardian e receptor das informações de Snowden, iniciou revelações sobre o monitoramento de dado feito pela NSA no Brasil. Uma apresentação interna indicou que a presidente Dilma Rousseff e sua equipe foram alvos diretos da “filtragem inteligente de dados” dos EUA.
    Denúncias mostram o nome da Petrobras em slides que exemplificam a atuação da NSA em “redes privadas”. A apresentação, “ultrassecreta”, levantou suspeitas de que os EUA tentavam obter informações sobre a exploração de petróleo em águas profundas. Parlamentares pediram o adiamento do leilão de exploração da camada pré-sal, que teve início ontem.

     

    Fonte: Correio Braziliense

     

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