Um país em chamas

    O Brasil vive uma situação aparentemente contraditória: a taxa de desemprego continua cadente – em abril, atingiu o menor patamar (4,9%) da série histórica para esse mês – e, mesmo assim, o que se vê nas ruas são protestos ruidosos, greves oportunistas de servidores públicos às vésperas da Copa do Mundo, desrespeito de grevistas a decisões judiciais, invasões impunes de prédios públicos, aumento da violência, forte polarização política nas redes sociais e na imprensa.

    Se há uma palavra para definir este momento é “insatisfação”, como, aliás, captou pesquisa recente do instituto americano Pew Research. Segundo a enquete, a primeira conduzida pela entidade com representatividade nacional, 72% dos brasileiros estão insatisfeitos.

    Um ano atrás eram 55%.

    As manifestações deflagradas em junho do ano passado exercem papel definitivo nesse ambiente. O que começou como protesto de um movimento específico – o do Passe Livre (MPL) – acabou por catalisar uma insatisfação latente em vários setores da vida nacional. Há descontentamento com os precários serviços de saúde, a educação de baixa qualidade, a falta de segurança nos centros urbanos, a corrupção da classe política, a desigualdade entre ricos e pobres etc.

    A realização da Copa do Mundo, com a construção de estádios dispendiosos, bancada por empréstimos subsidiados de bancos públicos, e a ausência quase absoluta de legado em termos de infraestrutura urbana, tornou-se apenas mais um elemento a catalisar a insatisfação popular. Com o início do torneio amanhã, o mau humor com o evento deve ser em grande medida superado, como indica o monitoramento feito pelo site Causa Brasil (http://www.causabrasil.com.br/) junto às redes sociais – o tema “apoio à Copa” superou há duas semanas o de “boicote à Copa”.

    Trata-se de uma trégua.

    No fundo, o que os manifestantes de rua estão exigindo é a retomada de reformas institucionais porque, apenas com a sua realização, o Brasil terá serviços públicos de qualidade, carga tributária menor e mais equilibrada, menor desigualdade de renda, maior justiça social, economia estável em bases permanentes, infraestrutura condizente com o tamanho e as aspirações do país e sistema político representativo dos interesses da maioria dos brasileiros.

    Somente reformas institucionais corrigirão distorções como, entre outras, as do sistema tributário brasileiro, que taxa mais os pobres que os ricos por meio de impostos diretos e indiretos sobre o consumo; do ensino universitário, que educa gratuitamente os filhos da elite nas melhores universidades públicas e oferece bolsas para que os estudantes de baixa renda se formem em fábricas (particulares) de diploma; do Imposto de Renda, que permite aos ricos e a quem tem dinheiro para pagar plano de saúde ou consulta médica deduzir esses gastos, tirando na prática recursos da saúde pública; do sistema de crédito estatal, que direciona dinheiro subsidiado do Tesouro a empresas com acesso aos mercados de capitais dentro e fora do país; do funcionalismo, que tem estabilidade no emprego, ao contrário dos trabalhadores do setor privado; do regime de trabalho de juízes e procuradores, que têm direito a dois meses de férias remuneradas por ano; do regime próprio de previdência do setor público, que acumula déficit (coberto por todos os contribuintes) de R$ 62,7 bilhões por ano para beneficiar 972.324 pessoas, enquanto o INSS registra déficit de R$ 49,8 bilhões para um universo de 31,1 milhões de beneficiários; da economia fechada, que isola o país, impedindo-o de se modernizar.

    A última reforma institucional importante realizada no Brasil data de 2003, quando o Congresso Nacional aprovou a emenda constitucional que igualou as regras de aposentadoria do funcionalismo às dos trabalhadores do setor privado.

    Na prática, aquela reforma só entrou em vigor nove anos depois, quando a presidente Dilma Rousseff decidiu regulamentá-la – proponente da emenda, o então presidente Lula desistiu de concluir a reforma por considerá-la politicamente custosa.

    Desde então, as propostas de mudança institucional foram abandonadas, sob a desculpa de que “os brasileiros não querem reformas”. Trata-se de uma falácia, usada com o intuito de esconder a falta de vontade política para enfrentar os interesses mais retrógrados da República. Os protestos exigem transformações e estas só poderão ser viabilizadas mediante reformas.

    A presidente Dilma perdeu oportunidade histórica ao não abraçar as bandeiras das manifestações, incorporando-as à agenda de seu governo e desafiando a ampla base política que a apoia a aprová-la. Seria uma agenda capaz de unir o país. Atônita, a presidente abraçou sua coalizão anti-impeachment e reagiu com platitudes que sabia inviáveis (constituinte exclusiva para tratar da reforma política, pacto fiscal, mobilidade urbana). Na prática, não apresentou proposta concreta e tudo ficou como está.

    No fim da primeira fase dos protestos, o governo Dilma se tornou o principal tema das manifestações. Era natural que isso ocorresse, uma vez que, diante das manifestações, a população responsabilizasse Brasília por todos os males. E como a economia vai mal há três anos, em decorrência principalmente de equívocos cometidos pelo próprio governo, a presidente não consegue alinhar uma estratégia para enfrentar as adversidades. Em clima eleitoral, passou a açular os adversários com um discurso que prega o medo: apenas uma gestão do PT manterá os direitos dos trabalhadores e evitará medidas impopulares.

    Enquanto isso, o país vive um impasse. Está paralisado no modelo que, em meio aos ganhos iniciais da estabilização econômica, permitiu a adoção de programas de transferência de renda, diminuindo a desigualdade social. O aumento da equidade, daqui em diante, dependerá de avanços significativos nas áreas de educação e saúde. O problema é que o Estado, que se agigantou nos últimos anos, está exaurido: cobra uma carga elevada de tributos, a mais alta do mundo em desenvolvimento – cerca de 36% do PIB -, asfixiando o setor privado, para no fim prestar péssimos serviços à sociedade em quase todas as áreas.

    Cristiano Romero é editor-executivo e escreve às quartas-feiras E-mail cristiano.romero@valor.com.br

     

    Fonte: Valor

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