Foi editada recentemente a Medida Provisória (MP) nº 784, que equipa o Banco Central e a Comissão de Valores Mobiliários com instrumentos de prevenção, investigação e punição de infrações administrativas de pessoas físicas e jurídicas que atuam nos mercados de capitais e financeiro. A MP moderniza a caixa de ferramentas da Administração para coibir ilícitos por meio de várias inovações, das quais destaco duas: acordos de leniência e termos de compromisso. Ainda amplia o valor das multas e dispõe sobre poderes coercitivos e cautelares do BC, entre outras mudanças.
A adoção de acordos de leniência e termos de compromisso no setor financeiro é inspirada na experiência bem-sucedida do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que desde 2003 celebra acordos de leniência – espécie de delação de pessoas jurídicas – para pôr fim a cartéis. A MP também resulta dos avanços no combate à corrupção propiciados pela colaboração premiada e pela leniência, desde o advento das Leis de Organizações Criminosas (12.850/13) e Anticorrupção (12.846/13) em 2013.
Embora o Cade já tenha celebrado até hoje mais de 50 acordos de leniência, que resultaram na sanção de empresas e na aplicação de multas, o programa da autoridade existe há mais de 15 anos e enfrentou desafios para se estruturar. Prosperou graças a várias adequações. A política de acordos atual tem potencial de aumentar o conhecimento da autoridade sobre ilícitos, uma vez que cria uma corrida pela colaboração, especialmente em condutas praticadas por vários agentes.
Se tal potencial benéfico existe no âmbito concorrencial, há pontos da MP do setor financeiro que precisam ser aprimorados. Várias das 97 emendas legislativas propostas na tramitação da MP no Congresso caminham nessa direção. Caso o aperfeiçoamento não se realize, contudo, colocam-se em risco tanto os instrumentos criados pela norma, quanto os benefícios do arranjo jurídico que já vem funcionando. Como ensina a parábola, não se coloca vinho novo em odres velhos, sob pena de se perder os dois.
Há pelo menos três questões a serem endereçadas. Primeiro, uma política de acordos só funciona quando há um escalonamento de benefícios entre quem assina o primeiro acordo – a leniência – e os demais. Para fazer sentido como estratégia de detecção e comprovação de ilícitos, o primeiro a procurar um acordo deve incorrer em penas menores do que o segundo. Ou seja, o acordo inicial deve ser mais benéfico ao colaborador do que os acordos subsequentes. Do contrário, nunca haverá um primeiro. Isso vale para condutas praticadas em conjunto por diversos agentes, de modo que os termos de cessação são uma segunda, terceira ou quarta leniência.
Política só funciona com escalonamento de benefícios entre quem assina o acordo primeiro e os demais
Os benefícios do primeiro signatário em relação ao segundo, contudo, não são claros na MP, na qual a leniência implica reconhecimento da prática ilícita, mas o termo de compromisso, não. Quem chega depois não precisa reconhecer participação, o que reduz incentivos para que infratores reportem condutas ilícitas às autoridades. O ideal para evitar esse tipo de incentivo perverso é exigir reconhecimento de participação e colaboração nas investigações para todos os signatários de acordos, ao menos quando se tratar de condutas coordenadas, a exemplo do que acontece no âmbito concorrencial.
Um ponto ainda mais grave é que o modelo de acordo de leniência criado prevê extinção da pena na esfera administrativa, mas não elimina a responsabilização criminal. A ausência de benefícios penais diminui incentivos para colaboração, dado que infrações administrativas podem ser enquadradas como crimes – e um executivo provavelmente não irá colaborar caso sua conduta possa ter repercussão penal. Somente a extinção ou redução da punibilidade criminal pode solucionar essa questão. Uma vez que a Constituição proíbe a disposição sobre matéria penal em medida provisória, a melhor técnica legislativa recomendaria o envio de projeto de lei para tratar do tema ou a modificação da MP no Congresso.
A ausência de previsões sobre responsabilização criminal é ainda mais crítica quando se trata de redações abertas de infrações administrativas previstas, como, por exemplo, “estruturar operações sem fundamentação econômica” ou “realizar operações em desacordo com os princípios que regem a atividade autorizada”. A descrição genérica de tais condutas torna provável a sobreposição entre infrações administrativas e crimes contra o sistema financeiro e contra os mercados de capitais. Embora a redação aberta seja adequada para definir infrações desse tipo, uma vez que facilita a atuação da autoridade administrativa, o fato é que abre-se espaço para que a conduta seja interpretada como crime, o que acaba por eliminar os incentivos para que a pessoa física colabore com a administração, já que uma conduta confessa poderá ser processada criminalmente.
Por fim, deve-se esclarecer que a decretação de sigilo nos termos de compromisso deve respeitar os prazos e o sistema de publicidade dos documentos previstos na Lei de Acesso à Informação (12.527/11), sem que isso ameace a própria efetividade dos acordos. A solução de deixar termos vagos na legislação é tão insatisfatória quanto a alternativa de dizer que todos os acordos serão públicos. De um lado, a falta de transparência pode afetar a capacidade dos instrumentos sinalizarem aos demais participantes do mercado a gravidade dos ilícitos. De outro, o sigilo de algumas informações por algum período pode ser necessário para o cumprimento do acordo. Esta é a prática do Cade, por exemplo, na negociação de acordos que preveem a alienação de ativos.
O sucesso dos instrumentos dependerá de como Bacen e CVM pretendem manejá-los e colaborar com outras autoridades. As experiências do uso de instrumentos presentes na medida provisória já pavimentou lições importantes que podem ser incorporadas ao texto pelo Congresso e também regulamentadas por via infralegal pelas duas instituições.
O sucesso dos instrumentos ainda dependerá de como o Judiciário agirá quando as decisões administrativas começarem a ser questionadas judicialmente. Há uma grande chance do movimento de judicialização se acelerar, especialmente a depender dos valores das multas. A Administração só tem a ganhar caso aproveite a oportunidade para aprender com a experiência do Cade e com a teia normativa existente sobre o tema. Vinho novo em odres novos preserva os dois: o vinho e os odres.
Vinicius Marques de Carvalho é professor da Faculdade de Direito da USP e advogado. Foi presidente do Cade entre 2012 e 2016.