Edição 0 - 04/11/2009

BOCA PAULISTA ELETRÔNICO Nº 28, DE 4.11.09: Previdência não é despesa, mas investimento no cidadão

 

 

BOCA PAULISTA ELETRÔNICO

São Paulo, 4 de novembro de 2009 – nº  28

PREVIDÊNCIA NÃO É DESPESA, MAS INVESTIMENTO NO CIDADÃO

Uma tese constantemente repisada por vários “luminares” econômicos, consubstanciada na matéria “Pra boi dormir”, reproduzida no quadro abaixo, de autoria do consultor econômico Raul Velloso, publicada no Estadão, no dia 12/10/09, foi objeto de réplica do Conselho Regional do Sinal-SP – ainda não publicada pelo jornal – com os seguintes dizeres:

Eis aqui este sambinha feito numa nota só. Outras notas vão entrar, mas a base é uma só” (Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim)

O que os analistas – a grande maioria – têm em comum com a estrofe do poeta é que eles se batem numa nota só, não costumam ir além dos manuais de economia e reiteradamente comungam a visão de que gastos públicos com previdência, pessoal e assistência social produzem um ambiente inflacionário.

Não é uma verdade absoluta se contextualizada. Afirma-se que o governo conseguiu um feito impressionante ao colocar em prática um modelo de expansão da demanda, com base na massa de consumo de cerca de 40 milhões de pessoas, além de seus dependentes. Feitas as contas, falamos de, no mínimo, 90 milhões de pessoas (cerca de 47% da população brasileira), considerando-se 50% destas como monoparentais, um modelo bastante democrático, portanto (as famílias têm, em média, 3,1 dependentes, conforme Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD/IBGE-2008).

O que de expressivo a retórica desses economistas revela é o caráter puramente classista que eles atribuem ao Estado em uma sociedade capitalista. É uma defesa implícita para que o Estado esteja voltado unicamente aos interesses do capital – investimentos públicos, especialmente em infraestrutura de transportes – e para que permita a autorregulação do mercado a despeito das contingências econômicas, ignorando o fato de o Estado ser um forte indutor do investimento, como que se o empresariado estivesse de olho apenas nos gastos públicos.

Se foi possível manter um razoável crescimento ao longo dos últimos 6 anos, deveu-se à ação decisiva do Estado de possibilitar a inclusão de mais e mais pessoas no mercado de consumo. Uma simples consulta às estatísticas mostra isto. Houve, segundo o PNAD/IBGE, uma redução de 9% na desigualdade social ao longo dos últimos 10 anos. Mas isso não comove, é pura política Keynesiana fora de moda.

Comove alguns a necessidade inexorável de o Estado socorrer inelutavelmente a banca ante qualquer sinal de fragilidade. Na recente crise (que muitos insistem em afirmar extinta), há uma conta a pagar decorrente da liberação de parte do compulsório (que acabou empoçado para a aquisição de títulos públicos), renúncia fiscal (IPI de automóveis, "linha branca" etc., que cobrarão, também, um custo futuro em danos ao meio ambiente). Mas isto não é contabilizado como um pecado contra as finanças públicas, mesmo que represente perdas orçamentárias expressivas, tanto quanto o é o aumento real do salário mínimo (previdência), bolsa família, salário dos servidores etc.

Bem, aqui não se contabilizam como investimentos os empréstimos concedidos pelo BNDES, já que nosso sistema financeiro não está apto a financiar investimentos de longo prazo; tampouco se consideram investimentos em Previdência e Seguridade Social como investimentos, mas como despesas. Na verdade, “despesas” com aposentadoria rural – conquista soberana da constituinte cidadã -, não são despesas previdenciárias, mas a maior transferência de renda do mundo.

Retiremos a aposentadoria rural do orçamento previdenciário e o veremos superavitário, mas isso contraria a lógica do capital, onde compete ao Estado propiciar as condições adequadas à acumulação e que os irrelevantes trabalhadores do campo disputem, no mercado, o salário que este esteja disposto a lhes pagar. Também não se fala dos subsídios transferidos ao setor agrário exportador, mas se vê com preocupação o desenvolvimento de uma enorme base assentada na agricultura familiar: é ineficiente, dizem.

Nenhuma preocupação com os elevados juros que perseguem a economia brasileira de há muito. Ao contrário, os arautos da economia insistem em assustar a sociedade com “a eterna ameaça de inflação de demanda”. Para eles, a incidência de gastos públicos e privados, crescendo forte, produz simultaneamente excesso de demanda sobre a precária herança de capacidade de produção deixada pelos tantos anos de investimentos pífios na produção interna. Em países sérios, a autoridade monetária – ao cuidar da política monetária e cambial -, permanece atenta ao ambiente geral da produção e aos condicionantes do crescimento econômico. Emite, portanto, sinais dentro de um conjunto integrado de política econômica, sobre os futuros gargalos de crescimento, tanto no setor privado como no setor público, coisa que raramente vemos por aqui.

Mas a tibieza não cessa. A clássica recomendação dos analistas econômicos é a de que qualquer aumento de gasto corrente teria de ser feito sob a forma de abono para que pudesse ser retirado à medida que se acumulassem novas pressões inflacionárias. Ou seja, a leitura do discurso sugere que se os aumentos forem inexoráveis, que se criem artifícios para futuros recuos, afinal, o compromisso é com o capital.

Por que não se fala em redução da taxa básica de juros como fator importante de equilíbrio orçamentário? Há espaço para que os juros reais se situem em torno de 3,3%, ou menos até – o que é expressivo em termos de endividamento público. Nunca devemos nos esquecer que a sociedade garante a moeda por crer no Estado e que os bancos, por força desta confiança, criam moedas e, com isso, ganham muito sobre um recurso financeiro que não representa riqueza material.

Ademais, se a economia crescer de forma sustentada, a relação dívida/PIB tende a decrescer. Mas não se fala nisso, pois não se encontra estampado nos manuais. O que se diz no artigo é a velha receita "o bolo necessita crescer para depois se distribuírem riquezas".

Parece-nos que a parcela da renda voltada ao consumo de bens-salários seja mais forte no segmento de menor renda da população (aquele do programa Bolsa Família, das pensões, das aposentadorias rurais etc.). Isso, na verdade, ativa a economia real, uma vez que não se destina aos movimentos especulativos, tão ao gosto da classe média, segundo o velho principio da demanda agregada.

Há de fato dúvidas sobre o grau de proteção efetiva conferida aos segmentos mais pobres da população, porque não nos parece suficiente a transferência direta de renda propiciada pelo programa Bolsa Família. Faz-se necessário muito mais para que se alterem estruturalmente os fatores geradores do empobrecimento no país. Faz-se necessário um agressivo fomento à economia popular sem que esta se subordine aos influxos do mercado. É necessária a estruturação de um sistema de distribuição de mercadorias – postos e entrepostos de vendas e circulação para os produtos oriundos das iniciativas populares, um sistema próprio de financiamento e poupança, de caráter popular, que se assente sobre a base mais tangível da sociedade, qual seja, a comunidade onde as pessoas vivem, trabalham e produzem. Enfim, a configuração de um novo padrão de desenvolvimento socioeconômico que tenha como cerne a necessidade de democratizar a base produtiva capitalista e romper a hegemonia do capital financeiro na condução das políticas públicas do Estado brasileiro.

Entende-se que a imensa capacidade criadora do homem permite a superação das dificuldades, mas mudar gera insegurança; é melhor, então, permanecer com as velhas certezas e o samba de uma nota só dos gastos manuais.

Conselho Regional do Sinal-SP

Estadão – Economia & Negócios

Segunda-Feira, 12 de Outubro de 2009

Pra boi dormir

*Raul Velloso

Passados 20 anos da promulgação da Constituição de 1988, o governo conseguiu um feito impressionante. Pôs em prática um modelo de sustentação e expansão da demanda de consumo de um grupo gigantesco que, com base em dados de 2005, pode ser estimado em cerca de 40 milhões de pessoas, sem contar seus dependentes. No ano passado, o total dos pagamentos diretos a essas pessoas alcançou a cifra chocante de R$ 378 bilhões, nada menos do que 2/3 do Orçamento federal. Em comparação com 1987, esses pagamentos cresceram 72% acima da inflação e pelo menos 6% acima do PIB, implicando forte queda da poupança nacional.

Trata-se dos itens Previdência, pessoal e assistência social, exatamente os de maior peso individual nos pagamentos da União. Se agregarmos a esses itens os desembolsos com saúde e as demais despesas correntes, chegaremos a um orçamento de gastos correntes provavelmente sem similar no exterior, cujo total se situa em pelo menos 83% do orçamento não financeiro da União. Desse, aliás, apenas 5% se referem a investimentos, enquanto os restantes 12% correspondem ao pagamento de parcela do serviço da dívida.

Para gerir os rendimentos dessa massa, o governo toma basicamente quatro decisões ao longo do ano, todas alvo de muita discussão no Congresso e na mídia, por razões óbvias: reajustes do salário mínimo, dos benefícios do INSS acima de um salário mínimo, do valor individual do Bolsa-Família e dos servidores públicos.

Em resumo, o Orçamento federal virou uma impressionante "folha de pagamento", e ainda assim isso não o exime de críticas. Há dúvidas sobre o grau de proteção efetiva conferido aos segmentos mais pobres da população, pagam-se salários de servidores bem acima do setor privado em funções similares. Existe óbvio inchaço da máquina pública. Constata-se também um baixo grau contributivo na Previdência. Do total de gastos do INSS, por exemplo, apenas 1/3 se refere a benefícios cobertos com contribuições dos potenciais beneficiários, caindo o resto no "colo da viúva".

Priorizar esse manto de proteção implicou, dentro do esforço de ajuste fiscal posto em prática nos últimos anos para equacionar o risco de insolvência pública, a imposição de uma carga excessiva de impostos e o completo abandono dos investimentos públicos, especialmente em infraestrutura de transportes.

Mais recentemente, ficou claro que, passado pouco tempo, a incidência de gastos públicos e privados crescendo forte e simultaneamente produz excesso de demanda sobre a produção interna, diante da precária herança de capacidade de produção, após tantos anos de investimentos pífios. Isso ocorre mesmo em fases de cenário externo muito favorável, como o período 2002-2008, em que as taxas de câmbio e de juros caem sistematicamente, viabilizando a expansão do consumo e, especialmente, do investimento privado. Daí para as pressões inflacionárias e sobre as contas externas é um passo, exigindo subida da taxa Selic e a interrupção do processo de investimento e crescimento contínuo da economia.

Na verdade, além de conferir primazia à ação anticíclica a cargo do Banco Central, o governo poderia ter aproveitado a crise atual para fazer ajustes no modelo de expansão dos gastos correntes. E, caso tivesse mesmo de aumentar o gasto, o certo seria deslanchar um programa de investimentos em infraestrutura e suspender qualquer aumento de pagamento individual sob os itens antes referidos. E porque os investimentos respondem muito lentamente em vista de vários entraves hoje existentes, qualquer aumento de gasto corrente teria de ser feito sob a forma de abono, para que esse dispêndio adicional pudesse ser retirado à medida que se acumulassem novas pressões inflacionárias.

Assim, a construção desse gigantesco manto de proteção orçamentária a certos segmentos da sociedade está impedindo o crescimento sustentável do País e nos impôs uma grande armadilha. De forma análoga ao que ocorre com o combate à inflação, continuar defendendo a ampliação do manto de proteção já não rende tantos dividendos políticos; mas retirar as vantagens já concedidas pode impor custos elevados. Aqui, são tantos os eleitores beneficiados por pagamentos diretos do Orçamento que os políticos de visão limitada só enxergam uma rota – manter para sempre as pessoas nos feudos já conquistados e promover maiores aumentos reais de benefícios e salários. Curiosamente, o Executivo federal, que deveria procurar atenuar esse dilema (pois está na posição de percebê-lo com maior clareza), promete, ao contrário, uma nova lei de consolidação de vantagens (uma "CLT social"), cristalizando-o cada vez mais.

Em vez de buscar uma mera consolidação via lei, a receita para garantir verdadeiramente os ganhos sociais, deveria primeiro investir, para só depois consolidar. Só que mobilizar os vultosos recursos públicos exigidos pelos investimentos mais urgentes, incluindo os requeridos pelos megaeventos esportivos à frente, sem mexer nesse modelo ou causar inflação (alternativamente, queda no crescimento do PIB) é conversa pra boi dormir.

* Raul Velloso é consultor econômico

SINAL – Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central

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