Edição 6 - 06/11/2012

IDEIAS EM REVISTA nº 6, de 6.11.12: Do “saber” constituído ao saber construído

 

IDEIAS EM REVISTA

SINAL-SP

São Paulo, 6 de novembro de 2012 – nº  6

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EDITORIAL

O texto que segue, de autoria de Idalvo Toscano, trata dos processos de capacitação. Segundo ele, processos assim "devem guardar aderência às funções da autarquia desde que estas funções se voltem ao interesse público. Tais processos, não podem cair de cima, mas – muitíssimo mais profícuo – serem construídos “ouvindo-se” aqueles que fazem o dia-a-dia da instituição e, assim, devem atender, simultaneamente, aos interesses de seus funcionários."

Toscano, funcionário do Banco Central do Brasil, é economista, com formação em Planejamento Urbano pela FGV/SP.

Boa leitura!

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DO “SABER” CONSTITUÍDO AO SABER CONSTRUÍDO

Idalvo Toscano

“(…) sem a livre luta entre as opiniões, a vida morre em todas as instituições públicas, torna-se uma vida aparente, onde resta a burocracia como único elemento ativo” (A revolução russa – Luxemburgo, R.; trad. Isabel Maria Loureiro, Petrópolis; 1991).

Um dos conceitos administrativos que me retorna com frequência é o de “incompetência treinada”. Ouvi em aulas do saudoso Maurício Tragtenberg, na FGV/SP.

Sempre o reputei – o conceito e o autor – de uma limpidez etérea: convivo cotidianamente com e na burocracia de Estado, embora – devo admitir – me surpreenda constantemente o seu “modus operandi”.

Parece-me que escapa o objetivo a que se deve prestar uma instituição republicana, já que os desígnios de sua existência é servir a coletividade, a coisa pública – “res publica”, no latim – que, nos trópicos, assume o caráter de ninguém, já que é “público” e não privado! Tal entendimento traz subjacente, além da reafirmação politicamente elitista de que o “pertencimento” advém exclusivamente do “ter” e não do “ser”, no caso, a propriedade e a cidadania, respectivamente.

Assim, e. g., os bancos criam riquezas em decorrência da “genialidade” de seus administradores e não pelo fato de que é a confiança (fidúcia) que funda o Estado; este garante a moeda que, multiplicada virtualmente pelos bancos corrói as entranhas do capitalismo avançado, ou seja, o sentido de comunidade e sociedade, esgarçado nos tempos atuais, é capaz de produzir valores que deveriam retornar a esta mesma coletividade; mas esta é uma história para outro momento.

A burocracia tem por essência justificar o mais do mesmo: “as coisas são assim porque sempre foram deste modo”, repetem paradigmaticamente os burocratas fingindo não perceber que “há muitos esqueletos” nos armários – processos de trabalho que surgiram não se sabe quando e, tampouco, por que –, mas persistem irremovíveis. Daí se insiste na “ineficiência do poder público” e na necessidade urgente de um “choque de gestão”, expressão tão corroída como âncoras de velhas embarcações (aqui teríamos, então, um capítulo especial – “Dos Consultores”!).

Pois bem, ia dizendo, à ineficiência de gestão nas instituições de Estado, demanda processos de educação continuada, com suas pós-graduações, doutorados, pós-doutorados, licenças capacitação etc. Seus conteúdos são aderentes aos “objetivos organizacionais”, mesmo que, após a qualificação, o funcionário continue a fazer quase tudo que fazia antes e sinta-se frustrado, inútil e supérfluo; enfim, padecendo de “exaustão por fadiga de ociosidade”!

Ademais, nunca se explicita com clareza o que vem a ser tais “objetivos organizacionais”: sempre acreditei que fosse bem servir à coletividade, pois não posso entender que alguém que dedique tanto esforço em adquirir conhecimentos e habilidades deva continuar a cuidar dos “esqueletos organizacionais” existentes. Parece-me que o caso é, verdadeiramente, de incapacidade administrativa no comando da instituição!

Dois caminhos se apresentam, pois:

1.   O cidadão “capacitado” se manda em busca de uma atividade que traga satisfação e realização; ou,

2.  Procede-se a uma reformulação do conceito de capacitação/treinamento em voga.

Na segunda hipótese, é imprescindível que se repensem as relações de trabalho (e os processos daí decorrentes), com a destruição da hierarquia de quartéis que impregna a casa (e suas variações autoritárias de pseudo meritocracia) e se consolide o principio de que os funcionários são servidores públicos, regidos por estatuto jurídico próprio – Lei 8.112 – e com compromisso com a sociedade que lhe paga os salários.

Este é um passo fundamental na internalização da democracia que já se estabeleceu lá fora, mas que aqui quase não adentrou.

Processos de capacitação devem, sim, guardar aderência às funções da autarquia desde que estas funções se voltem ao interesse público. Tais processos, não podem cair de cima, mas – muitíssimo mais profícuo – serem construídos “ouvindo-se” aqueles que fazem o dia-a-dia da instituição e, assim, devem atender, simultaneamente, aos interesses de seus funcionários. Mas esperar isto é “muito demais” para as cabeças em postos de comando: “eu quero”, “não quero”, “eu decido” etc. É a tônica do “ato de governar” característico daqueles ocupantes de funções comissionadas, no geral.

Oportuno revisitar o uso que os gregos fazem da palavra “techné” (“saber fazer de forma eficaz”, conforme Heródoto) e “epistéme (“conhecimento teórico”, conforme Aristóteles). A importância desta distinção bem se aplica às diversas formas de treinamento/capacitação implantados em instituições públicas: o que se busca essencialmente são espíritos práticos, mas não investigativos:

“A busca do conhecimento requer espíritos inquisidores, capazes de postular ideias que desafiam o senso comum (como Darwin e Einstein). A realização da tecnologia requer espíritos práticos, que trabalhem as minúcias e o detalhe para que nossas construções funcionem (como Edison e Linus Torvalds)”.¹

O que se pretende, enfim? Consolidar a “incompetência treinada” ou formar cidadãos que possam, além de responder aos desafios técnicos que se apresentam, produzir criticamente e assumir responsabilidades para com a res publica e, assim, construir fortes vínculos com a sociedade a quem deve servir para além de seus interesses imediatos e coorporativos:

"(…) a essência de toda a verdadeira educação ou paideia é a que dá ao homem o desejo e a ânsia de se tornar um cidadão perfeito e o ensina a mandar e a obedecer, tendo a justiça como fundamento" (cit. in Jaeger, 2001).²

Por fim, mas não menos importante, treinamento/capacitação custa muita grana e é importante atentarmos ao erário público e interesse coletivo.

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¹ Techne-Episteme: O projeto iluminista revisto no século XXI, Câmara, G.[disponível em: http://techne-episteme.blogspot.com.br/2006/10/techne-e-episteme.html#!/2006/10/techne-e-episteme.html]

² JAEGER, Werner Wilhelm, 1888-1961. Paideia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 4ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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