Edição 0 - 21/11/2002

AND – DISCUSSÃO SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BANCO CENTRAL

O SINAL, a partir deste Apito, est  abrindo a discussÆo sobre a independˆncia do Banco Central, a ser aprofundada na Assembl‚ia Nacional Deliberativa, que ser  realizada em dezembro/2002

“DUAS OU TRÒS OBSERVA€åES SOBRE A SUBORDINA€ÇO DO BANCO CENTRAL AO INTERESSE PéBLICO”

Nelson Carvalheiro Professor do Departamento de Economia e do Programa de Estudos P¢s-Graduados em Economia Pol¡tica da FEA/
PUCSP. E-mail: nc@pucsp.br.

Para um pa¡s como o Brasil, a questÆo da autonomia do Banco Central ‚ secund ria. NÆo h 
magia que altere a realidade: considerado ainda um pa¡s de renda m‚dia, o Brasil tem in£meros
problemas econ“micos e sociais que serÆo resolvidos muito lentamente, possivelmente num
horizonte de algumas gera‡äes, mas apenas atrav‚s de pol¡ticas p£blicas coordenadas.
Desenvolveu-se no pa¡s h  alguns anos uma discussÆo elitista, originada nos meios acadˆmicos e de grande agrado nos c¡rculos financeiros nacionais e internacionais, de que a independˆncia do Banco Central ‚ fundamental para controlar a infla‡Æo e para melhorar o desempenho
macroecon“mico. Essa discussÆo, longe de ser um privil‚gio brasileiro, originou-se em pesquisas
internacionais que associavam taxas de infla‡Æo reduzidas a bancos centrais independentes, mas
sem mostrar a causalidade entre esses fatores.
A defesa de um Banco Central subordinado ao conjunto das pol¡ticas p£blicas baseia-se nos
seguintes argumentos:
a) a independˆncia do Banco Central deve ocorrer gradualmente, de modo que seja uma
conseqˆncia natural da evolu‡Æo da pol¡tica econ“mica e do encaminhamento das solu‡äes dos
problemas do pa¡s;
b) as questäes institucionais referentes … regulamenta‡Æo, fiscaliza‡Æo e controle devem atender basicamente ao interesse p£blico;
c) a pol¡tica monet ria deve ter contornos bem definidos, distinguindo-se das demais pol¡ticas
p£blicas mas com elas compondo um todo harm“nico.
No Brasil, o primeiro passo para a cria‡Æo de um Banco Central independente foi dado por sua
pr¢pria cria‡Æo. O Bacen foi criado pela lei 4.595, de 31/12/64, nÆo como fruto da reforma
institucional promovida pelos militares a partir de mar‡o de 1964, mas em decorrˆncia de uma
proposta mais antiga, iniciada com a cria‡Æo da SUMOC, atrav‚s do decreto-lei 7.293, de 2/2/45.
A SUMOC subordinava-se diretamente ao Minist‚rio da Fazenda e tinha como objetivos exercer o
controle do mercado monet rio, orientar a fiscaliza‡Æo dos bancos e preparar a organiza‡Æo do Banco Central.
Em 1947, o Governo Dutra remeteu ao Congresso Nacional projeto de lei com a finalidade de
promover ampla reforma do sistema banc rio, destacando a importƒncia de criar um banco central cl ssico no Brasil, visto que a SUMOC nÆo tinha as atribui‡äes e a amplitude institucional para essa tarefa. O projeto original desencadeou estudos e polˆmicas intermin veis, at‚ que em 1963 o presidente JoÆo Goulart encaminhasse ao Congresso novo projeto de lei sobre o assunto,
regulamentando a formula‡Æo e a execu‡Æo da pol¡tica monet ria, banc ria e credit¡cia do pa¡s.
Finalmente, num esfor‡o coordenado pelo deputado Ulysses GuimarÆes, no final de 1964 foi
promulgada a reforma banc ria, com a cria‡Æo do Banco Central do Brasil e com a aprova‡Æo das
suas atribui‡äes.
O segundo movimento na dire‡Æo da maioridade institucional do Banco Central ocorreu nos
anos 80, vinte anos depois de sua cria‡Æo, quando foram iniciados estudos e come‡aram a ser
adotadas providˆncias concretas para que o Banco do Brasil deixasse de ser autoridade monet ria
paralela e a Secretaria do Tesouro se transformasse em realidade. No final da d‚cada de 80, o Bacen passou apenas a encarregar-se das fun‡äes cl ssicas de pol¡tica monet ria, sobrecarregando-se com outras incumbˆncias mais ou menos t¡picas, como a execu‡Æo da pol¡tica cambial, a administra‡Æo das reservas internacionais e a supervisÆo e fiscaliza‡Æo das institui‡äes do Sistema Financeiro Nacional, livrando-se daquelas que tinham car ter de fomento ou que resvalavam em questäes fiscais.
Como … ‚poca o Congresso Nacional estava mobilizado visando construir a nova Constitui‡Æo
Federal, promulgada em 1988, muitos aspectos sobre o papel do Banco Central extravasavam as
tribunas legislativas e passaram a ser bastante discutidos por diversos segmentos da sociedade.
Concretamente, a regulamenta‡Æo mais vis¡vel registrada na Constitui‡Æo foi a proibi‡Æo de o
Banco Central financiar diretamente o Tesouro Nacional. Os debates, hoje menos intensos, sobre
a regulamenta‡Æo do Sistema Financeiro Nacional, prevista no artigo 192, j  completaram catorze
anos.
O terceiro passo para a autonomia do Banco Central ocorreu mais recentemente. No in¡cio de
1999, incapaz de resistir …s pressäes de ataques especulativos contra a moeda nacional, o Banco
Central optou pela flexibiliza‡Æo cambial. Em seguida, preparou uma nova estrat‚gia de pol¡tica
monet ria, baseada em metas para a infla‡Æo, em que taxas de infla‡Æo fixadas pelo governo
passaram a ser os objetivos perseguidos prioritariamente pela Autoridade Monet ria.
A op‡Æo por essa estrat‚gia foi acompanhada por ampla divulga‡Æo, ressaltando-se que o
Banco Central estava abandonando outros objetivos, tais como os agregados monet rios ou a taxa de cƒmbio nominal. Ao mesmo tempo, o Bacen procurou dar maior transparˆncia … pol¡tica
monet ria, atrav‚s da divulga‡Æo das atas das reuniäes do Copom – Comitˆ de Pol¡tica Monet ria
– e da publica‡Æo trimestral do Relat¢rio de Infla‡Æo. As metas de infla‡Æo, fixadas pelo governo, foram atingidas em 1999 e 2000 mas desde 2001 os resultados nÆo vˆm sendo os esperados.
Portanto, ‚ not vel a evolu‡Æo institucional do Bacen desde sua cria‡Æo. Uma mudan‡a no ritmo dessa evolu‡Æo nÆo pode ser natural, pois o pa¡s evolui muito lentamente, aqui inclu¡dos seus governantes e congressistas. Quando o pa¡s tinha uma infla‡Æo alta, os defensores do Bacen
independente arrancavam seus cabelos ao apresentar suas estat¡sticas. Hoje, desde 1994, a infla‡Æo ‚ menor (como, ali s, em praticamente todos os pa¡ses). Qual ‚ o sentido de ter um Banco Central independente quando o pa¡s tem tantos problemas de desemprego, desigualdade de renda e riqueza, violˆncia e desrespeito …s institui‡äes? Ao que parece, essa ‚ a pergunta que faz calar!
O segundo argumento em defesa da subordina‡Æo do Bacen ao conjunto da pol¡tica
econ“mica refere-se … participa‡Æo do governo na atividade econ“mica. O assunto foi muito
discutido a partir dos anos 70 por diversos representantes da Escola de Chicago, como George
Stigler, Sam Peltzman e Richard Posner mas, com a onda liberalizante da d‚cada de 90, o assunto
passou para segundo plano.
A argumenta‡Æo tradicional para a interven‡Æo do governo era o interesse p£blico. O estado,
direta ou indiretamente, atuava para corrigir as chamadas falhas de mercado e proteger de
preju¡zos os consumidores mal-informados. O rompimento com essa visÆo conservadora ocorreu
quando aqueles economistas passaram a observar que a regulamenta‡Æo governamental protegia
na verdade os interesses da ind£stria regulamentada. Em outras palavras, os grupos regulados, geralmente poderosos, influenciavam tanto os pol¡ticos como a burocracia respons vel pela regulamenta‡Æo, “capturando” os regulamentadores.
Com a difusÆo dessas id‚ias, surgiram novas vertentes de pensamento para explicar os motivos
da regulamenta‡Æo governamental em diversos setores. Muitos cientistas pol¡ticos e mesmo alguns economistas passaram a enfatizar a importƒncia da ideologia. Outros passaram a destacar aspectos institucionais ligados … burocracia ou mesmo questäes ligadas ao financiamento das opera‡äes governamentais.
No Brasil, a participa‡Æo de banqueiros ou representantes das institui‡äes financeiras no
governo, particularmente na diretoria do Bacen, ‚ bastante evidente. Quando o presidente Eurico
Gaspar Dutra enviou ao Congresso Nacional o projeto de lei da reforma banc ria, quem assinava
a exposi‡Æo de motivos era seu Ministro da Fazenda, o banqueiro Correa e Castro. Ainda nÆo h  um levantamento preciso sobre as origens dos diretores do Bacen desde sua cria‡Æo, mas nÆo h 
d£vidas de que a participa‡Æo de representantes das institui‡äes financeiras foi e continua sendo
elevada at‚ hoje.
 preciso tamb‚m lembrar que uma das questäes mais controversas durante muitos anos sobre
a conduta do Banco Central referiu-se … passividade da pol¡tica monet ria. O grande instrumento utilizado pelo Banco Central nos anos 80 foi a utiliza‡Æo das opera‡äes de mercado aberto para regular a liqidez da economia e, principalmente, controlar a taxa de juros. Contudo, ao final de cada dia, o Banco Central praticava a chamada “zeragem” do mercado, quando se dispunha a absorver as sobras de recursos das institui‡äes financeiras ou a emprestar recursos …quelas em dificuldades.
A zeragem do mercado trazia uma s‚rie de problemas. De um lado, ela inviabilizava
formalmente a assistˆncia financeira de liquidez, que tinha taxas punitivas, acima daquelas
cobradas diariamente pelo Banco Central. De outro lado, a pr¢pria autoridade monet ria
viabilizava os problemas de “moral hazard”, pois as institui‡äes financeiras tinham a certeza da
garantia de recursos por parte do Banco Central, ao mesmo tempo em que este inibia o
desenvolvimento do mercado de opera‡äes interbanc rias.
Al‚m disso, o Banco Central h  muitos anos vem enfatizando a taxa de juros como sua mais
importante vari vel operacional. Embora com a implanta‡Æo do Plano Real em 1994 o Banco
Central tenha sido obrigado a elaborar trimestralmente uma programa‡Æo monet ria, esta passou a revelar fraquezas como pe‡a de resistˆncia da condu‡Æo da pol¡tica monet ria.
Logo no in¡cio do Plano Real a ilusÆo de que ter¡amos metas de agregados monet rios
desvaneceu-se, tornando evidente a existˆncia de uma ƒncora cambial, atrelada … fixa‡Æo da taxa
de juros para arbitrar a movimenta‡Æo de capitais internacionais. Al‚m disso, quando a assistˆncia
financeira de liqidez foi reformulada, em 1996, revigorando-se o mecanismo do redesconto (com
a cria‡Æo da TBC e da TBAN), as metas de taxas de juros passaram a ser explicitadas pelo Banco
Central. Por fim, nas crises financeiras externas que afligiram mais intensamente a economia
brasileira, a vari vel de ajuste foi sempre a taxa de juros, nÆo abrindo espa‡o para reformula‡äes da programa‡Æo monet ria.
Portanto, a programa‡Æo monet ria cumpriu a voca‡Æo j  demonstrada anteriormente pelo
regime de pol¡tica monet ria baseado em metas de agregados monet rios: ela tornou-se,
praticamente desde o nascedouro – assim como o antigo or‡amento monet rio – figura acess¢ria
na condu‡Æo da pol¡tica monet ria.
Ap¢s a crise cambial do in¡cio de 1999, o pa¡s adotou o regime de metas para a infla‡Æo para a
pol¡tica monet ria, em que a taxa de juros tem papel preponderante como vari vel operacional.
Um simples decreto, em junho de 1999, estabeleceu como diretriz para fixa‡Æo do regime de
pol¡tica monet ria a sistem tica de metas para a infla‡Æo, sobrepondo-se, na pr tica, … lei vigente que criou a programa‡Æo monet ria e obriga o BACEN a prestar contas ao Congresso Nacional trimestralmente.
Contudo, nossos representantes no Congresso Nacional ainda nÆo perceberam o ¢bvio:
pode-se fixar o pre‡o desejado (a taxa de juros) ou a quantidade desejada (o agregado monet rio),
mas nunca ambos ao mesmo tempo. Assim, como a taxa de juros hoje ‚ a vari vel operacional da
pol¡tica monet ria, constituindo-se no instrumento que d  in¡cio … propaga‡Æo da atua‡Æo do Banco Central na economia, a existˆncia da programa‡Æo monet ria pode ser considerada uma
anomalia da pol¡tica econ“mica.
Em outras palavras, embora ainda seja uma exigˆncia legal, a programa‡Æo monet ria deixou
de ser mecanismo de controle e participa‡Æo do Congresso Nacional na pol¡tica econ“mica. O
relat¢rio de infla‡Æo, publicado trimestralmente, sobrepäe-se amplamente como documento de
presta‡Æo de contas da pol¡tica monet ria e deveria ser encaminhado formalmente …s Casas do
Poder Legislativo, em substitui‡Æo a um processo que nÆo tem mais razÆo para existir. Nesse
sentido, o pr¢prio Poder Executivo deveria encaminhar projeto de lei propondo a mudan‡a,
sacramentando a necess ria transparˆncia da nova estrat‚gia junto … opiniÆo p£blica.
O terceiro argumento utilizado em defesa da subordina‡Æo do Bacen ao conjunto da pol¡tica
econ“mica governamental refere-se a um espectro maligno da conduta da Autoridade Monet ria.
Em certas ocasiäes, quando o Bacen interv‚m no mercado cambial vendendo t¡tulos indexados …
taxa de cƒmbio, demonstra ser o centro nervoso da pol¡tica econ“mica:
a) fazendo pol¡tica cambial, pois deseja impedir novas deprecia‡äes da moeda nacional;
b) fazendo pol¡tica fiscal, pois aumenta a d¡vida mobili ria federal em poder do p£blico;
c) fazendo pol¡tica monet ria, pois retira moeda do p£blico.
Ao sinalizar que nÆo concorda com o patamar da cota‡Æo do d¢lar norte-americano, o Bacen
transmite a mensagem de que ainda trabalha com meta de taxa de cƒmbio nominal, em pleno
regime de cƒmbio flex¡vel, realimentando a possibilidade de ataques especulativos contra a moeda nacional. Al‚m disso, o Bacen contribui para emperrar mais ainda os mecanismos de transmissÆo
da pol¡tica monet ria, pois substitui t¡tulos prefixados por t¡tulos p¢s-fixados. As informa‡äes sobre essa substitui‡Æo perversa podem ser verificadas pelo exame do gr fico que mostra a participa‡Æo
de t¡tulos da d¡vida p£blica federal em poder do p£blico, classificados em prefixados, p¢s-fixados
(corrigidos por v rios indexadores) e indexados pela varia‡Æo cambial. Deve-se assinalar que,
quanto … d¡vida mobili ria federal, a indexa‡Æo que h  alguns anos havia sido quase expurgada
hoje prevalece amplamente.
Ademais, o Bacen est  contribuindo para uma expansÆo fiscal, numa ‚poca em que o governo
prima pelo an£ncio da conten‡Æo fiscal.  poss¡vel que esse problema perca relevƒncia quando o Bacen deixar de emitir t¡tulos p£blicos de sua responsabilidade e passar a operar apenas no
mercado secund rio, fazendo pol¡tica monet ria pura.
Em resumo, sÆo essas algumas das observa‡äes que precisam ser levadas em conta na an lise da
questÆo da independˆncia do Banco Central.  claro que elas traduzem uma visÆo particular e,
portanto, nÆo devem ser entendidas como a mensagem da verdade absoluta. Por‚m, elas se
opäem a uma forma de pensamento que coloca o estado na raiz dos problemas brasileiros e que
considera o mercado – e a competitividade a ele inerente – como o ser onipotente da economia.
Essa concep‡Æo tem dois grandes defeitos, freqentemente escamoteados pelos economistas do
“main stream”. De um lado, ap¢ia-se nos modelos microecon“micos de equil¡brio geral, que
destacam as virtudes do mercado e repelem automaticamente qualquer forma de interven‡Æo
externa, deixando de levar em conta os preceitos dos modelos macroecon“micos – principalmente os de cunho keynesiano – que mostram que o desempenho de uma economia de mercado pode ser melhorado com a a‡Æo governamental. De outro lado, a “ditadura do mercado” reflete um ser abstrato que pensa ter o poder sobre todas as causas terrenas mas deixa de considerar que o Banco Central – em geral comandado por antigos ou futuros banqueiros privados – faz parte desse mesmo mercado, ora do lado da oferta, ora do lado da demanda.
Portanto, nada mais justo que o espa‡o ocupado pela autoridade monet ria contemple os
interesses da sociedade, representados pelo governo como um todo.

Edições Anteriores RSS
Matéria anteriorA Assembléia Nacional Deliberativa do Sinal
Matéria seguinteAND – Assembléia Nacional Deliberativa