LITURGIAS

            Fui a uma festa intima na nova residência de um casal emergente na qual a conversa girou sobre as duas principais notícias daquele sábado: o prêmio acumulado de mais de 46,6 milhões da mega-sena e a colocação à venda na Vieira Souto de uma cobertura por R$ 18 milhões.         Éramos dez pessoas e nove delas garantiram que se ganhassem aquela dinheirama toda comprariam o imóvel. Fui voz discordante sob o argumento de não possuir “pedigree” para morar naquele super apartamento. Afirmei que, estranho no ninho, não tenho dúvidas de que seria olhado com desconfiança pelos demais moradores. Seria um peixe fora d’água. Meus companheiros de conversa ignoraram as justificativas e deram unanimidade ao argumento de que a “gente acostuma”.- Está certo! A gente se acostuma. Mas, e os antigos moradores? Será que se acostumarão conosco? Perguntei. Argumentei que requinte e postura não são distribuídos como brindes extras em nenhum tipo de enriquecimento. É preciso vivência! Convivência! E exemplifiquei:        – Possuo um conhecido – bom amigo, mas que, como todas as pessoas fúteis, adoram ostentar ao mesmo tem em que se fingem humildes – vive se autoproclamando um “pobre assalariado”. De repente, misteriosamente, o sujeito danou a trocar de carro e, dizem, está de Mercedes Benz esporte. Inconformado por estar sempre sendo confundido como “chofer de rico” tomou a providência que considerou fundamental: passou a dirigir apenas de roupa esporte na tentativa de contrariar a lógica que condutor de automóvel, de cor negra, trajando terno, será sempre visto como motorista particular. Adiantou alguma coisa? Aposto que não!         – Luiz Inácio Lula da Silva possui condições de se tornar melhor presidente do que seus antecessores. Sua trajetória de vida o credencia para isso. Entretanto, dificilmente possuirá o porte e a elegância, por exemplo, do Fernando Henrique no exercício do cargo. Berço é fundamental. Condição que, goste-se ou não, são inerentes tanto a FHC quanto a Fernando Collor. Não dá para ser “povão” o tempo todo. É como diz o ex-presidente José Sarney: existe a liturgia do cargo.        – É o mesmo parâmetro exigido no ensino e pelo esporte: possuir base. A Barra da Tijuca não chegará a ter o charme do Leblon  e tampouco a elegância da Gávea. Débora Secco poderá ficar rica em poucos anos, mas é quase impossível que venha conquistar a classe da Fernanda Montenegro. Por mais tempo que morem na Europa, os Ronaldos dificilmente ganharão o refinamento do Paulo Roberto Falcão. Carlinhos Brow sequer chegará perto de Gilberto Gil e é improvável que seja lembrado para ser ministro. O Rio de Janeiro, culturalmente nunca será Paris. Tampouco Londres e Nova Iorque (entenda das duas maneiras).         Lembrei-lhes que nem os vizinhos do Ronaldo “Fenônemo” no condomínio de alto luxo na Barra em que morava perdoaram-lhe a convivência quando reclamaram dos churrascos com pagode promovidos no prédio pela “entourage” Bento-Ribeirense da estrela internacional. E afirmei que a ocorrência não foi uma ação discriminatória. O que houve foi a preservação do estágio social e cultural que alcançaram. Estavam sendo desrespeitados em pelos menos dois direitos para os quais ninguém dúvida que devem ter desembolsado muito dinheiro: tranqüilidade e privacidade.            Terminei minhas considerações “vaiado de pé”. Minha sorte é que a fome e a sede falaram mais alto. O casal candidato a novo rico havia servido o jantar em outro cômodo. Imaginei que encontraria uma sofisticada mesa recheada de canapés, scargots, camarões da Malásia, diversas pastas e croissant’s de todos os tipos. Para acompanhar um ProSseco de safra privilegiada servido em taça de cristal catarinense.          Enquanto mastigava um naco de churrasco, coberto com molho à campanha, acompanhado por cerveja morna num copo americano, revivi minha mãe, repetindo do alto da sua sabedoria, uma das suas verdades incontestáveis: – Meu filho, não adianta! Quem nasce para vintém nunca chegará a dez réis.              

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