Por Camilla Veras Mota | De São Paulo
Nos últimos dias de agosto de 1984, 5 mil trabalhadores de todos os Estados brasileiros estavam reunidos no Pavilhão Vera Cruz, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. No ano anterior, eles haviam fundado a Central Única de Trabalhadores (CUT) e esperavam, naquela reunião, definir uma estratégia que garantisse à entidade longevidade maior do que as tentativas de articulação anteriores – o Comando Geral dos Trabalhadores, criado em 1962, não sobrevivera ao início do regime militar.
Apesar de os sindicatos ligados à indústria, especialmente a automotiva, estarem à frente dos movimentos que, havia cinco anos, vinham forjando condições para a criação de uma organização nacional de trabalhadores, 44% dos presentes ao encontro no ABC eram ligados à atividade rural. Muitos deles viajaram quatro ou cinco dias de ônibus e dormiram em colchões improvisados espalhados pelos galpões do pavilhão, que 30 anos antes era o estúdio da Companhia Vera Cruz de Cinema.
“Como vocês conseguiram se organizar, em plena ditadura, sem internet, sem celular?” “Não sei”, responde Jair Meneguelli, primeiro presidente da CUT. Para ele, foi a “urgência” da união dos trabalhadores em escala nacional o que permitiu transpor as dificuldades logísticas e de comunicação em tempos sem redes sociais.
“Entendíamos que era absolutamente necessária uma organização nacional. Nossos problemas eram semelhantes de norte a sul do país e nossos patrões já estavam se unindo. Nos primeiros anos da CUT, viajávamos de Estado em Estado, promovendo debates. Eu costumava falar: ‘Precisamos nos organizar! Se não quiser se unir à CUT, filie-se à CGT [Confederação Geral dos Trabalhadores, fundada em 1986]. Compre um pedaço de terra e se filie a uma delegacia regional'”.
O esforço parece ter funcionado. Na década de 1980, a taxa de sindicalização no Brasil chegou a 30%, depois de ser pouco mais de 6% da População Economicamente Ativa (PEA) em 1960. Desde o começo dos anos 2000, ela oscila entre 16% e 18% da PEA, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A CUT é a mais antiga central de trabalhadores do Brasil em atividade.
Se conseguiu ser a organização sindical de vida mais longa no país, aos 30 anos a central perdeu o papel de grande articulador dos movimentos sociais, que desempenhou nas primeiras duas décadas de vida. Esteve praticamente ausente dos protestos que tomaram as ruas do país em junho. Para alguns, envelheceu com a chegada do PT ao poder. Para outros, o aparente enfraquecimento é reflexo de conquistas e do avanço dos direitos, muitos consolidados na Constituição de 1988. Uma outra avaliação é que a economia e as relações de trabalho se transformaram e, com ela, mudou o próprio movimento sindical.
A indústria, mais organizada, perdeu força dentro da entidade – passou a representar 16,5% dos delegados presentes no congresso de 2012, contra 21% em 1986 – e entraram os serviços, cujo peso na central avançou de 26,3% para 56,2% no mesmo período e onde tudo é mais disperso. O rearranjo reflete em parte a dinâmica do Produto Interno Bruto (PIB) nesses 30 anos. Em 1984, a indústria representava 46,5% do valor adicionado do PIB – a de transformação, 33,9%. Em 2012, esses percentuais caíram respectivamente para 26,3% e 13,2%. No mesmo intervalo, a participação do setor de serviços na economia brasileira avançou de 53,4% para 68,47%.
A resolução do primeiro congresso da CUT dizia que, “apesar das dificuldades”, a central já estava em 13 Estados, com 26 regionais. Admitia que “ainda não representa a totalidade dos trabalhadores” e colocava entre suas bandeiras a luta pelas “Diretas Já”, o fim da política econômica “recessiva, administrada pelo FMI”, a reforma agrária, o fim do imposto sindical e a jornada de trabalho de 40 horas. O país vivia os últimos anos do regime militar.
A CUT tem hoje 3.806 entidades filiadas e, de acordo com os dados mais recentes do Ministério do Trabalho, de 2011, representa 36,7% dos trabalhadores sindicalizados. A Força Sindical, sua principal “concorrente”, fundada em 1991, é a segunda mais representativa, com 13,7% de participação.
Em 30 anos, o salário mínimo no Brasil saltou de US$ 70 para US$ 340 – a principal conquista da central, na opinião de Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, que assumiu a presidência da CUT em 1994, depois de três mandatos consecutivos de Meneguelli. Nesse período, os trabalhadores da zona rural, 44% dos presentes no primeiro congresso, reduziram-se a apenas 14,8%, índice aferido na última reunião, no ano passado. O setor de serviços ganhou representatividade e, não por acaso, o atual presidente, Vagner Freitas, vem da categoria dos bancários.
Manifestação da CUT na Praça da Sé, em SP, contra o Plano Verão, em 1989
“A CUT que Meneguelli presidiu não é a mesma que assumi”, afirma Freitas. Com o aumento da escolaridade e qualificação da mão de obra, diz, “bandeira e palavra de ordem” não convencem mais o trabalhador. Para sobreviver, as centrais tiveram de sofisticar o discurso e as reivindicações. Na década de 80, nos anos finais da ditadura, vivia-se a luta de classes de maneira mais óbvia, por direitos básicos, na opinião do sindicalista.
À medida que as demandas foram sendo atendidas, era preciso repensar a central, afirma Freitas. O estilo combativo dos primeiros anos deu lugar a um modelo mais propositivo. A evolução das gestões dos presidentes da CUT, acredita, é um reflexo disso. “Luiz Marinho [presidente entre 2003 e 2005 e atual prefeito de São Bernardo ] negociou a valorização do salário mínimo diretamente com o Executivo. Isso era impensável na época do regime militar”, exemplifica. “Hoje discutimos PLR [Participação nos Lucros e Receita], precisamos entender e estudar os balanços das empresas.”
Essa profissionalização, crê, também deu prestígio internacional à CUT, que chega a prestar “consultoria” para sindicatos estrangeiros. A última experiência de Freitas nesse sentido aconteceu no Estado do Mississipi, nos EUA, em janeiro, quando operários de uma fábrica da montadora japonesa Nissan pediram sugestões de como agir contra uma determinação da empresa que impedia que os funcionários tivessem uma representação sindical. Hoje, os dirigentes sindicais falam com Freitas pelo Facebook – que ele acessa também do iPhone -, tuitam e comentam em seu blog.
Meneguelli concorda. “Nós não tínhamos nenhum diálogo com os empresários ou direito de negociar. Quem falava com a gente era a federação dos trabalhadores [nomeada pelo regime militar], cujo presidente nem conhecíamos e que estava encarregada das discussões de Altamira a São Bernardo do Campo. Nós precisávamos de autonomia. Havia multinacionais na nossa cidade, nossa possibilidade de ganhos era maior do que em outras partes do país”.
Essa conjuntura diferente, diz Meneguelli, era a principal razão das greves setoriais ou gerais que afetaram o país a partir da greve na Scania, em 1978, durante o regime militar. “Aquela era a época de bater o bife, hoje o tempo é de fritar o bife”, ilustra João Guilherme Vargas, consultor e sindicalista. Para ele, nos anos 80, a busca pelo direito de representação própria e de negociação com os patrões era o motor da atividade sindical. Hoje, diz, esse impulso é a conjuntura favorável, com relativa estabilidade do emprego e ganho real dos salários.
O gaúcho Luiz Adelar Scheuer acompanhou de perto as mudanças de gestão de central, mas do outro lado da mesa. À frente da Mercedes-Benz por 28 anos, ele se aposentou em 2002 e chegou a negociar em campanhas salariais com os principais nomes da CUT. Entre eles, além de Vicentinho e Meneguelli, Heguiberto Navarro, o Guiba, primeiro presidente da Confederação Nacional dos Metalúrgicos da CUT, e o próprio Lula, que, como gosta de advertir o coordenador do Centro de Documentação da CUT, Antônio José Marques, nunca presidiu a central.
“A greve continua sendo instrumento de pressão. Hoje, é usada quando a negociação não evolui. Antes, era um recurso para fazê-la acontecer”, afirma Scheuer. Suas lembranças mais vivas daquela época são das câmaras setoriais, onde pela primeira vez, diz, governo, empresas e trabalhadores negociaram juntos. “A CUT – e posteriormente as outras centrais – conseguiram promover uma mudança de postura e cultural nos movimentos sociais do Brasil. Começaram a perceber que reivindicar e fazer greves apenas não era suficiente.”
A transformação, para Scheuer, começou pela indústria metalúrgica, mecânica e de material elétrico do Estado de São Paulo. Em 1992, lembra, quando estava assumindo a presidência da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), o setor automobilístico estava em crise. A expectativa era que fossem produzidas naquele ano apenas 600 mil unidades, 250 mil menos do que em 1991. Nesse cenário, continua, estavam em risco o emprego de 20 mil funcionários de montadoras e outros 20 mil de fornecedores. “Do lado do governo, eu tinha um bom contato com Dorothea Werneck, que fora ministra do Trabalho e tinha uma visão muito aberta, mais de negociação do que de imposição via Estado. Com o Vicentinho, então presidente da CUT, eu já havia estabelecido uma relação de confiança e diálogo, desde a época em que ele trabalhava na Mercedes.”
Reunião da câmara setorial em 1992, comandada por Dorothea Werneck
Quando Dorothea assumiu o Ministério da Indústria e Comércio, durante o governo Collor, ela procurou Scheuer. O governo queria que a indústria “desse uma arrancada” e saísse da situação iminente de crise, afirma o ex-presidente da Anfavea. A ministra foi a articuladora da câmara setorial dentro do governo. Scheuer promovia reuniões fechadas com os presidentes das montadoras.
“Com o apoio do governo, fomos para a mesa de negociação e tomamos as decisões no âmbito da Anfavea, do governo e do sindicato de São Bernardo [ligado à CUT]. Discutimos até chegarmos em um ponto de equilíbrio que fosse bom pra todo mundo”, lembra Scheuer.
As montadoras se comprometeram a manter nível de emprego, o governo reduziu impostos como IPI e ICMS, que levaram à redução dos preços, e os trabalhadores conseguiram aumentar a produção prevista naquele ano de 600 mil para 850 mil. Aposentado desde 2002, Scheuer dá consultoria principalmente para empresas estrangeiras que querem se estabelecer no Brasil, faz parte dos conselhos do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e se dedica à criação de gado da raça Canchim na fazenda Calabilu, em Capão Bonito (SP).
Entre os integrantes rurais da CUT, Avelino Ganzer, atualmente na Secretaria da Presidência da República em Altamira (PA), foi o primeiro vice-presidente da CUT. Ele conta que, fora da região Sudeste, a Igreja Católica teve papel decisivo na politização dos trabalhadores rurais e, consequentemente, na articulação da central pelo país.
“O Concílio do Vaticano 2 fortaleceu bastante as pastorais aqui no Brasil. O surgimento da Comissão Pastoral da Terra [que concentrou sua atuação inicialmente na região amazônica], em 1975, está intimamente ligado a esse fato”, diz Ganzer. Em 1979, houve em Santarém (PA), onde o sindicalista vivia, o primeiro encontro nacional de oposições sindicais. “No ano seguinte, conseguimos derrubar os pelegos e já debatíamos a construção de uma central única”, conta.
Para as reuniões em São Bernardo alguns sindicalistas cruzavam o Amazonas de barco por dois dias até Santarém e, depois, se aventuravam por até uma semana nos “atoleiros” da BR-163, que passa por Cuiabá. O novo sindicalismo, afirma, era “combativo, classista, autônomo e de base”, características que, em certa medida, segundo ele, não sobreviveram ao tempo.
“A experiência sindical precisa ser refeita. É preciso retomar os princípios de base”, diz Ganzer. Para ele, a crise de representatividade por que passa o sindicalismo acontece principalmente porque houve uma “acomodação na cúpula”. Assim como Meneguelli, Ganzer é contundente na crítica contra o imposto sindical, que acredita ter sido elemento importante de desmobilização do sindicalismo, já que o aproxima do Estado.
O sociólogo do trabalho Ricardo Antunes, presente no Congresso de Fundação da CUT, em 1983, acredita que, além da ascensão do Partido dos Trabalhadores ao poder, que estreitou a ligação entre sindicatos e governo, as mudanças na estrutura produtiva também são um desafio que a CUT e as outras centrais ainda não conseguem acompanhar. Além de fábricas cada vez mais automatizadas, que usam mão de obra de maneira menos intensiva que há 20 anos, surgem categorias praticamente sem tradição sindical, como a das domésticas, dos operadores de telemarketing, entre outras.
João Guilherme Vargas, por outro lado, diz que no Brasil se pratica a vanguarda do sindicalismo. Ele ressalta as ações unitárias das centrais, as marchas a Brasília, que no dia 6 de março deste ano levaram 60 mil pessoas à capital, entre eles 5 mil dirigentes. “Eles são recebidos pelos presidentes da Câmara, do Senado, do STF e da República. Não há hoje país no mundo onde isso aconteça”, diz.
Repensar o sindicalismo, para Ganzer, passa pelos princípios fundamentais, mas também pelo uso das novas tecnologias. “Para termos a adesão que tínhamos na década de 80, poderíamos promover grandes assembleias virtuais”, exemplifica. “O sindicalismo tem de ser muito mais presente no dia a dia da política. Tem que ir a Brasília, discutir com os partidos e parlamentares, apresentar propostas”, afirma Meneguelli.
Fonte: Valor Econômico