Por Antonio Delfim Netto
A história do Brasil revela sua tendência federalista cada vez que o poder central retira liberdade fiscal de Estados ou municípios. A primeira manifestação foi a enorme oposição à Constituição outorgada em 1824 pelo Imperador Pedro I, que praticamente eliminou a autonomia fiscal das Províncias, o que aumentou a confusão do seu governo e terminou na sua abdicação em 1831. O Ato Adicional de 1834 devolveu poder às províncias e aos municípios, mas não poupou a regência de várias rebeliões, sempre com algumas reivindicações tributárias. Não faltou como motivo à mais importante, a revolução Farroupilha (1835-1845), a ignorância pelo poder central das aspirações federalistas do Brasil. Seguramente, um dos motivos que facilitaram a queda do Império, foi a insensibilidade de Pedro II às permanentes reivindicações fiscais das províncias.
Depois de 20 anos de tentativas de centralização, a Constituição de 1988 reafirmou a clara preferência da sociedade brasileira pelo federalismo. Ela é condizente com o quadro de extrema concentração geográfica da economia brasileira onde cinco Estados detêm quase 2/3 do PIB. O problema é que avançamos muito pouco nas políticas de redução das diferenças regionais.
É nesse contexto em que se insere a atual discussão sobre a guerra fiscal e o fim das isenções de ICMS dos Estados. Num ambiente em que as ações para fomentar o desenvolvimento regional por parte do governo federal são limitadas (parte delas deriva da distribuição dos fundos de participação, afetados sempre que o governo federal opta por alguma “bondade”), ainda que isso deva ser minorado a partir de 2016, obrigar os Estados a praticar alíquotas isonômicas de ICMS ou mesmo manter a importante obrigatoriedade de aprovação unânime dos incentivos em âmbito do Confaz vai tornar-se, politicamente, cada vez mais difícil.
Debate sobre efeitos dos incentivos deve ser mais técnico
A defesa da isonomia usualmente começa pelo argumento de que a guerra fiscal é predatória. Em parte, isso é verdade, mas não significa que, necessariamente, as isenções de ICMS devam ser eliminadas instantaneamente em sua totalidade: é preciso regulamentá-las, instituindo limites e prazos. Essencial, também, é reconhecer a importância do incentivo como instrumento para o desenvolvimento regional, integrando-o a programas detalhados para esse fim, que inclusive disponham de métodos claros para a avaliação do desempenho. É fundamental, portanto, diferenciar as ações predatórias, das ações legítimas na defesa do desenvolvimento regional.
Um projeto de lei apresentado no Senado sugere um ponto essencial a ser considerado nesta discussão: a preservação das regras existentes para os benefícios já concedidos. Num momento em que a desconfiança dos agentes privados com relação ao governo é imensa, uma sinalização de manutenção das regras do jogo tem um valor importante. Imagine-se, por exemplo, a situação de uma empresa que, pelos incentivos fiscais, foi seduzida a instalar-se no interior de um Estado do nordeste, gerando empregos e renda nesta localidade. Ao retirar-se o incentivo, ela incorrerá em prejuízo tanto caso decida permanecer nesta localidade quanto caso opte transferir-se para outra. Mesmo que a perda seja algo que o governo julgue insuficiente para impedir a alteração das regras, é preciso lembrar que a economia é um jogo dinâmico: será que o empresário se disporá a investir novamente? E, mais, antevendo a possibilidade deste tipo de comportamento no futuro, quem investirá hoje em resposta a qualquer iniciativa?
Há também quem argumente que o fim dos incentivos ao ICMS elevará a arrecadação de todos os Estados. Em primeiro lugar, isso não é tão claro: há Estados que se tornarão perdedores (provavelmente, os menores), mesmo que apenas num segundo momento, caso as empresas decidam deixar seu território.
Antes de mais nada, é necessária uma análise conduzida de forma imparcial e completa. Um exemplo foi dado por um estudo do BancoInternacional de Desenvolvimento (BID) sobre renúncia tributária no Brasil. Ele mostra que falta uma metodologia única a ser seguida para estimar a renúncia fiscal por todos os Estados e municípios, o que facilitaria em muito a elaboração de avaliações sobre a sua efetividade enquanto instrumento de indução do desenvolvimento regional. Há evidências de que a simples homogeneização das alíquotas de ICMS pode estar longe de caracterizar uma solução para todas as mazelas tributárias brasileiras. Precisamos de uma discussão muito mais ampla sobre a simplificação do sistema tributário como um todo. Notemos, aliás, que esta simplificação seria apenas uma das muitas facetas a serem abordadas numa batalha pelo aumento da produtividade que é, de fato, o que o Brasil precisa.
Em suma, é importante que a sociedade reafirme os seus valores numa sociedade mais igualitária, tanto social quanto regionalmente, como expresso na Constituição de 1988. Isso implica que um debate mais técnico e menos político sobre os efeitos econômicos e sociais dos incentivos regionais deve estar na ordem do dia, aproveitando o ensejo do projeto de lei complementar já apresentado ao Congresso.
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras
E-mail: contatodelfimnetto@terra.com.br
Fonte: Valor Econômico