Edição 143 – 16/9/2015
A César o que é de César
“Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” (Mateus 22:21)
Se vivo estivesse hoje, Jesus Cristo talvez revisse essa sua emblemática frase, em que separava as coisas da terra das celestiais. Observador da natureza e do homem, se inserido estivesse em uma sociedade em que o poder econômico é mais preponderante, comprando almas e construindo opiniões, talvez ele fizesse outras as suas palavras: Dai, pois, ao mercado o que é do mercado, e a Deus o que é de Deus. Assim, a frase dita ao povo judeu quando sob o jugo dos romanos, revela-se profética hoje, para uma população dominada pelos caprichos do mercado financeiro.
Ao mercado o que é do mercado, ou ao capital o que é do capital? Talvez essa segunda forma de colocar as coisas da terra seja atualmente mais facilmente compreensível. A formação das democracias ocidentais modernas buscou um equilíbrio entre a busca do bem estar social e a dinâmica de um sistema de produção gerador de renda e riqueza. Essa busca e consequente equilíbrio parecem ter cessado em algum momento do nosso passado recente.
Em outro Apito, “Um país chamado Brasil”, dissemos:
“Em algum momento da nossa história, o fim do acordo de Bretton Woods, para alguns, a queda do muro de Berlim, para outros, essa forma de ver o mundo se alterou. Os defensores do liberalismo, agora financeiro, passaram a vender a verdade de que apenas com a liberalização dos mercados financeiros, as economias periféricas chegariam ao paraíso. O Brasil, tardiamente, aceitou essa verdade e, com ela, o pacote completo da dependência dos fluxos de capital externo, e pior: o do tipo mais arisco.”
Essa nova fé nos trouxe consequências que estamos amargando hoje:
“Após décadas como participante do grupo de países com as taxas de juros mais altas do mundo, e a consequente transferência de renda do setor público ao setor privado, via endividamento e corte de despesas em áreas essenciais como saúde e educação, a conta volta a aparecer. E com a conta a solução proposta por quem vendeu uma ideia agora não tão boa: vamos cortar despesas desse setor ineficiente: o público. Solução: o superávit primário para pagar os juros da dívida deve ser obtido a ferro e a fogo.”
Naquele momento, no início deste ano, a disputa pelo quinhão da renda nacional, vencida mais uma vez pelo capital, dava-se sobre a flexibilização do mercado de trabalho.
De lá para cá, a situação da economia brasileira tem sido de contínua dificuldade em cumprir os compromissos de bom moço para com o sistema financeiro nacional e internacional.
O atual Sr. Ministro da Fazenda, Joaquim Levy, originário do sistema financeiro local, mas versado na língua e nos costumes do mundo financeirizado dos nossos dias, prometeu superávit primário para este ano e para o ano que vem. Em troca, nossos novos senhores seriam pacientes e manteriam a nossa nota de menino bem comportado e obediente. Contudo, a resultante política não deu respaldo suficiente para que se mantivesse a promessa, cristalizada na mudança da meta do próximo ano de superávit para déficit. Imperdoável.
Uma tal de Standard & Poor’s, comprovadamente incompetente em avaliar os ativos financeiros, sobrevalorizando as hipotecas imobiliárias negociadas como títulos, o que serviu de combustível para a crise de 2008, sim, essa mesma, rebaixou a nota da nossa economia de bom para mau menino.
Esse novo representante de César mostrou como funcionam as coisas. As economias devem fazer o possível e o impossível para cumprirem com suas obrigações financeiras, não importando o uso dos recursos que receberam. Talvez tenhamos até saudades do FMI e de suas missões das décadas de 80 e 90 do século passado.
As formas de exploração do capital financeiro adaptaram-se a um novo modelo no qual as crises de balanço de pagamentos aparentemente são reduzidas pelo acúmulo de alto montante de reservas internacionais por parte dos países que fazem parte desse jogo globalizado. Ao invés de assinarmos cartas de intenção com o FMI, conversamos com as agências de qualificação de risco internacionais e mantemos um volume de reservas tal que não estresse em demasia o mercado.
Naturalmente, a manutenção de reservas em um país que não gera saldo em transações correntes não é trivial. Nossas reservas têm origem na captação em mercado dos capitais externos destinados à aplicação financeira no país. Funciona assim: o capital entra para comprar ativos financeiros domésticos, tais como os títulos da dívida que pagam as taxas de juros das mais altas do planeta e o Banco Central do Brasil incorpora esse capital às nossas reservas. Ao fazê-lo, aumenta-se concomitantemente o estoque da dívida pública doméstica.
Nossas reservas estão em US$ 370 bilhões e, dado o nível atual do câmbio e das taxas de juros interna e externa, resulta em gastos com o pagamento de juros da ordem de R$ 200 bilhões por ano. Embora a contabilização entre o BCB e o Tesouro Nacional adote critérios de lançamento que acabam por reduzir esse valor, são esses os gastos que deveriam ser cobertos com o superávit primário. Também não se considera aqui o gasto com o pagamento de ajuste do swap cambial e que chega a valores da ordem de R$ 100 bilhões.
Ou seja, para manter a roleta do mercado financeiro doméstico girando, o Brasil gasta recursos cada vez mais difíceis de obter. O que fazer?
A resposta a essa pergunta não está nos manuais de macroeconomia, ensinada nas escolas de Economia, pois as alternativas ali colocadas já foram tentadas não apenas no Brasil, mas em diversas economias emergentes e, mais recentemente, em uma do bloco europeu: a Grécia.
Para quem acompanha e sofre com a falta de sensibilidade social de nossa elite econômica, a resposta parece estar na luta política da divisão de quem paga a conta do ajuste.
Quem deve pagar essa conta? Os que aferiram ganhos bilionários ao longo de todos esses anos e que pagaram muito pouco em impostos por isso? Ou quem sempre é chamado para pagar por tudo: a classe média, agora empobrecida e endividada, e a classe mais baixa, desprovida dos serviços públicos mais fundamentais?
O que o governo brasileiro poderia fazer de imediato, além de buscar o aumento da tributação das classes que tem ganhado com o atual modelo de financeirização da nossa economia? Poderia reduzir suas posições em swap, reduzindo o estoque de reservas internacionais, através de operações de venda de dólares a termo. Isso permitiria a redução dos gastos de manutenção das reservas e reduziria a exposição em câmbio do BCB. Poderia também pensar em reduzir a despesa com juros.
Outras ideias podem surgir, mas elas não devem perder o foco principal: o mercado deve servir ao homem, não o contrário.
Há cerca de 2000 anos atrás, o poder do César regulava a vida cotidiana das pessoas. A economia e o comércio tinham um papel subsidiário, embora importante para quem precisasse lutar para sobreviver no dia a dia. Mas a palavra de César era lei, ao menos na terra.
Muitas revoluções e mudanças de forma de pensar transcorreram desde então, mas parece que continuamos a saber das coisas do céu pela fé, e das coisas da terra pela observação e verificação de proposições explicativas. Não devemos basear as coisas da terra na fé em ideologias que acabam por servir a interesses que não buscam necessariamente o bem-estar de todos.
Contra o que não nos parece justo, temos a luta, o debate e a resistência.