A raiva no desencanto

    Segundo o dicionário a raiva é doença causada por vírus que acomete o sistema nervoso de mamíferos. Pois é, mas não apenas por este tipo de contágio o ser humano pode de repente ficar raivoso. Eu diria que existem outros fatores que podem também levar o ser humano àquele estado emocional negativo. O mais triste, mais dramático, é que a raiva pode levar também ao ódio, à ira feroz, ao rancor desmedido, e o homem, ou a mulher, se transformam. Me pergunto: se transformam mesmo ou apenas externam o que acalentavam bem escondidinho no íntimo de seu ser por quase toda uma vida? Os demais seres mortais a sua volta, que costumavam se relacionar com este ou aquele espécime humano sem jamais terem sentido a dor de uma mordida, de uma agressão, naturalmente ficarão muito assustados na primeira oportunidade em que o raivoso mostre os dentes e/ou as unhas através de sua língua ou de seus dedos. Hoje em dia tenho que acrescentar “dedos”, face muitos de nós freqüentarmos este espaço virtual, portanto nos expressarmos através da digitação de palavras. Ser “mordido” ou atacado por palavras mostra que o raivoso, ou raivosa, não é analfabeto nem irracional, e faz tudo conscientemente. Ia esquecendo de mais uma reação análoga à raiva. Refiro-me à cólera. O colérico age igualmente por impulso, mas este, o impulso, pode ter um motivo, uma razão, ou uma mera desculpa que, se não justifica o ataque pelo menos para o colérico serve de pretexto para fazer um descarrego do seu ódio, da sua ira, para cima de algum semelhante.  Seguindo neste raciocínio eu diria que se o tal semelhante se obstar a algum intento ou opinião do raivoso(a), ou colérico(a), se lhe causar embaraço de alguma forma, se tentar servir de obstáculo a alguma proposta, por expressar uma opinião que divirja da do espécime humano carregado de ódio, a explosão será iminente. A tendência é o raivoso jamais admitir que o é. A culpa será sempre do outro. Atenção, quanto mais o oponente, ou semelhante, insistir em seus argumentos contrários ao raciocínio, à preferência, e/ou conclusões do raivoso, ou colérico, pode esperar que vai vir chumbo grosso. Mesmo que haja algum tipo de amizade envolvendo as partes, não terá perdão. Repito: a culpa será sempre do outro. Não pensem, precipitadamente, que eu me considere alguém perfeito, não sujeito também a eventuais momentos que descrevo aqui. De forma alguma. Podem continuar a ler com a certeza de que tenho perfeita consciência dessa situação. Todavia, mais preocupante é quando aos sintomas da raiva, do ódio, da cólera, se junta um amadurecido preconceito que já vinha latente na formação do ser humano contagiado por aqueles vírus. A situação emocional de tal espécime pode     chegar a um descontrole que o obrigue, ainda que no seu íntimo não queira, a atacar alvos que antes acolhia em seu coração, em seus melhores sentimentos. Muitas das vezes este estado de raiva, ira, ódio, etc, pode se dar quando o ser humano mergulha num certo desencanto. É quando entra em campo, digamos assim, a decepção, a desilusão. Alguns diriam que é quando “a ficha cai”, ou quando a verdade mostra sua outra face e o ser se vê cara a cara com a mentira. Certos espécimes olham então no espelho e se desconhecem. O vidro polido traduz o lado que mantinha oculto de suas personalidades. Eu diria que ele (ou ela) se vê frente a frente com o real que na sua concepção não passava de imaginário, ou de invencionice de opositores. Eu digo opositores, não inimigos.  Talvez o mundo não desmorone sobre suas cabeças, talvez não, basta que ainda lhes tenha restado uma boa dose de bom senso e equilíbrio, de modo que possam lidar com este choque de realismo e, de certa forma, “exorcizar” aqueles sentimentos negativos que os haviam iludido, por um bom tempo, sem ele ou ela, perceberem que habitavam uma espécie de limbo, quase um inferno astral.  Preocupa-me, em alguns casos, que se a realidade não acontecer como eles querem, se a verdade não for aquela pela qual tanto pelejaram, eles possam sofrer bastante, ficarem com cicatrizes em suas almas, com marcas indeléveis que poderão torturá-los e assim precisarem de um tempo ainda maior para reagir e voltarem ao estado anterior. Mas um dia retornarão, com certeza. Sei que nem todos terão este estigma de penar por longo tempo. O estado da raiva em desencanto tende a passar, a se consumir normalmente, até porque não tem outro jeito. O oposto seria o ser humano atingir o grau mais triste daquele aparente desequilíbrio emocional que seria a loucura. Isto não desejamos para ninguém, não mesmo. Da minha parte sugiro a alguns que após a verdade se ter revelado e não sendo ela aquela com que sonharam o tempo todo, parem, respirem fundo, relaxem e escutem, por exemplo, esta linda canção do excelente compositor brasileiro, o Renato Teixeira. O título dela é “Amizade Sincera”. Muito bonita e nos faz refletir. De braços abertos e corações em festa muitos dos atingidos, às vezes até execrados, estarão prontos para receber de volta ao ninho antigo da amizade aqueles que por rápidos momentos, mas decisivas palavras, ou se afastaram ou ameaçaram fazê-lo. Certamente no íntimo de muitos atingidos não ficou nenhum rancor.  Podem voltar, e nem precisam bater à porta, vão entrando. Sejam bem-vindos.

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