A SAMAUMEIRA E OS PASSARINHOS

    Caros amigos, não é esta a primeira vez que divulgo um texto escrito, digamos assim, a quatro mãos. Quando o faço é sempre porque desejo valorizar o trabalho de algum autor amigo, algo que li e gostei demais e julguei que poderia acrescentar um pouco de mim, da minha vida, dos meus conceitos, ao que de belo e triste o texto já contém.Recebi outro dia do amigo, conterrâneo, contemporâneo e excelente poeta, com vários livros publicados, o Alberto Cohen, o que seria uma espécie de rascunho de uma “croniqueta”, como ele, em sua modéstia, assim classificou. O título é “Samaumeira”. O local referido no pequeno texto é o antigo Largo de Nazareth, em Belém do Pará, onde também nasci. Honra ao mérito, vamos à crônica do Cohen:            Samaumeira”Obsoleta e esquecida na antiga praça, suas raízes que afloram à superfície, rompendo o cimento, são tentáculos de um ser estranho que se recusou a morrer junto com uma época; tempo dos bondes, do Arraial, da Barraca de Santo Antônio em que as famílias jantavam nos quinze dias da Festa, os homens sempre de paletó e gravata.””Samaumeira que acompanhou as santas loucuras do padre Afonso em seu sonho de transformar uma capela em basílica. Samaumeira do Largo de Nazareth.””Depois, o progresso. Paralelepípedos e trilhos cobertos por aquela massa escura chamada asfalto, bondes substituídos por ônibus movidos pela fedorenta gasolina, e ela, impávida, a tudo assistindo, fiel às suas raízes.”               “Um dia sumiram os coretos, levados não se sabe por quem, ou para aonde. Perplexa, assistiu ao extermínio do Arraial, como se não fosse ele símbolo da tradição de um povo tão carente de tradições e de símbolos.” “Gradearam toda a Praça e transformaram-na num complexo de cimento e mármore, belo e frio, muito distante da simplicidade ingênua de outrora.” “A samaumeira, velha de cem anos, entendeu, naquele momento, que terminara um ciclo do qual era remanescente e quedou-se, quieta, como para não ser notada. Até mesmo suas plumas, que eram sopradas pelo vento num balé cheio de trejeitos e negaças, não mais enfeitaram o bairro. E ninguém notou.””Os periquitos, no entanto, não a esqueceram e fazem festa nos seus galhos todos os dias. Nessas horas, a samaumeira acorda julgando haver chegado, de novo, o tempo dos carrosséis e cavalinhos.”     (Autor: Alberto Cohen) Como já não vou à minha terra há  pouco mais de 30 anos guardei na minha memória de infância e de juventude a imagem do antigo Largo de Nazareth. Quando saía da aula no Colégio Nazareth, ali bem perto, costumava dar um giro pelo Largo antes de tomar o ônibus e voltar para casa. Era muito prazeroso estar ali, a qualquer hora.  No Largo namorei na minha mocidade, circulei muitas vezes após uma sessão do cinema Iracema, aos domingos à tarde, ali também fui flagrado, por minha madrinha Carmita, fazendo “gazeta”, a única que fiz na vida, juro.  Durante os festejos de N. Sra. De Nazaré, que começa no dia da realização do Círio, sempre no segundo domingo de outubro, e se estende por quinze dias, o Largo se transformava enchendo-se de luzes multicoloridas, de barracas tantas com petiscos variados, de carrosséis, roda-gigante, bandinhas animadas, um maravilhoso parque de diversões que fazia a alegria não apenas da petizada, mas dos adultos também. Famílias se encontravam ali. E como diz o nosso Alberto Cohen, a centenária samaumeira lá estava a testemunhar tudo, a alegrar o ambiente com o esvoaçar de suas samaúmas, bem branquinhas, e a espalhar poesia para todo lado. O Largo está, ou estava, bem em frente a grande e bonita Basílica de N. Sra. De Nazaré. Não havia assaltos, não havia mendigos, não havia grades e era comum vermos a felicidade a passear no Largo de Nazareth. Em outra mensagem, o amigo poeta, Cohen entristeceu-me ainda mais ao me informar: “Inicialmente amputaram o th. Nos anos sessenta, um prefeito nomeado, que nem paraense era, desmontou os coretos e sumiu com eles. Dizem que estariam  numa residência em Petrópolis. Não sei.”  “Anos depois, a Praça foi pavimentada, marmorizada e, pasme, toda (eu disse toda) gradeada, inclusive com fechaduras nos portões. A próxima iniciativa foi chamá-la de CAN, que nem sei direito o que é. Acho que Centro Arquitetônico de Nazaré. Obviamente, a tradição foi para o brejo junto com o Arraial, suas "barracas", brinquedos e bandinhas.” Os coretos a que se refere o amigo eram lindos, uma obra de arte, motivo, naturalmente, em se tratando de Brasil e de alguns brasileiros com poder, de os eliminar, ou coisa pior, que não afirmamos por falta de provas. Ah essa falta de visão  que não os deixa perceber que sem passado o presente, e especialmente o futuro, serão sempre mais pobres.  Amigos, temos muito que aprender com os povos europeus, por exemplo, sobre o respeito e a valorização permanente de sua história, de suas tradições, de sua cultura.  Impotentes, só nos resta indignar-nos, protestarmos, denunciarmos, embora saibamos que estamos a bradar para ouvidos moucos, desinteressados. Para eles, modernizar é destruir, sem qualquer pejo, o que, em verdade, pertence ao povo, ao patrimônio de uma cidade, de um Estado, de um País, geralmente copiando fórmulas que nada têm a ver conosco.  Vou encerrar ratificando a minha revolta, insubmisso convicto contra este pisotear a nossa história, a nossa tradição, em nome de um modernismo depredador. Assim, junto a indignação liquefeita deste paraense, deste “meninão” de sessenta e oito anos, a do bom amigo e poeta Alberto Cohen que, com muito talento, fecha esta crônica: “A especulação imobiliária e comercial invadiu o bairro transformando quase tudo em arranha-céus, bares, lanchonetes, pizzarias e quejandos. E por aí vai. Você perguntará: o que sobrou, então, das tradições? E eu lhe responderei: quase nada.”  “No meio desse quase nada estão a samaumeira que se recusa a morrer, os periquitinhos que sempre voltam e esse menino de sessenta e três anos, que ainda vive de lembranças.” Francisco Simões, a quatro mãos com o poeta paraense Alberto Cohen. (Março / 2005) 

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