Ah, saudade, me leva

    Outro dia, assistindo, como sempre fazemos, ao bom programa da TV Cultura, comandado pelo excelente Rolando Boldrin, o “Sr. Brasil”, um grupo de Minas cantou diversas músicas deliciosas do cancioneiro popular brasileiro que não se ouve em outras emissoras.A certa altura eles atacaram de “Ah, Saudade, Me Leva”. Acredito que a maioria de vocês, ou quase todos vocês, nem conheça esta canção. Fazia muito tempo que eu não a ouvia e, claro, me emocionei. Enquanto eles cantavam minha mente me transportou para bem longe no tempo numa viagem mais feliz do que saudosista em qualquer dos sentidos que costumam dar a este termo.De repente eu me vi ainda criança, na minha cidade natal, Belém do Pará. Naquela casa imensa, no bairro do Marco, eu, sendo o primogênito de mais nove irmãos e irmãs, sempre gostei de brincar sozinho. Durante anos eu não tive irmão para compartilhar as brincadeiras, porém isto jamais me impediu de ser feliz brincando só, falando com meus amigos invisíveis.As recordações foram aflorando em minha mente. Quanto de importante também foi o imenso porão daquela grande casa na minha infância e começo de juventude. Ali aprendi muita coisa. Uma de minhas experiências foi montar uma “rádio”, só minha, colocando pequena mesa, cadeira, uma lata cobrindo um toco de madeira (microfone), usando recortes de jornais e revistas contendo anúncios e notícias e um pequeno rádio de pilha para quando precisava tocar música.Fantasia não me faltava e o silêncio era meu cúmplice. Falava para mim mesmo, porém acabei alcançando um objetivo que eu alimentara num amor que era só meu: ser radialista. Aos 17 anos fui aprovado em concurso público, junto com outro amigo, o Clodomir Colino, para ser locutor da recém inaugurada Rádio Marajoara. Eram 50 os candidatos, aprovados somente nós dois. O sonho virou realidade. Mas o porão me foi útil para muito mais. Ali eu fazia exercícios, muitos, até remava num aparelho que meu pai comprara, já que ele fora remador da Tuna Luso Comercial. No porão eu me refugiava quando algo me perturbava, mas devia ser mantido em segredo. Ali também eu procurava o sossego amigo para estudar, fazer minhas lições de casa. Já no começo da minha mocidade, foi no porão que tomei as primeiras, deliciosas e inesquecíveis lições de amor. Essas “aulas” costumavam ser mais à noite, todavia eventualmente aconteciam de dia quando a oportunidade permitia. O nome da “professora”? Era Ana, morena, bonita, corpo escultural, ela tinha uns poucos anos mais que eu, amiga e muito carinhosa. Nunca a esquecerei. Além do imenso porão tenho gratas recordações dos três quintais daquela casa de número 371, na Av. Tito Franco. Sei que ela não mais existe, o progresso a derrubou para seguir em frente. Nos quintais eu soltei pipas, catei pipas, fiz cruzas em que venci o duelo e outros em que perdi. Como é na vida real, claro. Posso afirmar que fui uma criança feliz. Nos quintais havia muitas árvores, frutas variadas, para todos os gostos, além de um chiqueiro e um galinheiro. No último dos quintais, quase do tamanho de um campo de futebol, jogávamos bola e também, vez ou outra, subíamos no muro para “roubar” cacau do quintal da amiga Isa. Esta fruta nós não tínhamos em nossos terrenos. Lembro que no primeiro quintal havia uma garage onde meu pai e meu avô guardavam seus carros, também um grande secador de roupas, na horizontal, todo de madeira, dois tanques para lavar roupas, e ainda sobrava muito espaço. Ali, com o tempo, montamos uma quadra na qual jogávamos volley e basquete. Muitos dos amigos que iam lá brincar conosco ainda estão por aí, espalhados nesta vida. Alguns fazem contato comigo outros nem tanto, além dos que já partiram desta vida.Lembrança muito gostosa era quando as irmãs Caldas, nossas vizinhas, iam lá participar das competições de volley. O Chico ficava todo ouriçado quando via a bonita morena Zilda, a mais velha delas. Não menos belas eram suas irmãs Conceição, Madalena e a pequena Lurdinha. Ah, saudade, obrigado por me levares de volta a tanto encanto e beleza. Recordo-me dos Avelar, que eram praticamente nossos irmãos, tínhamos uma convivência fraterna, além dos irmãos Cohen, os Durans, entre outros. Algumas regras eram rigorosamente aplicadas lá em casa. À noite, por exemplo, quando eu ainda era bem jovem, se ia conversar com amigos de casas próximas e eu esquecia da hora minha madrinha Carmita, praticamente minha segunda mãe, com certeza não esquecia.Ali pelas 21 horas ela aparecia onde eu estivesse e me chamava dizendo que estava na hora de voltar pra casa. Claro que alguns dos amigos me gozavam por isso, mas eu não ousava nem a desrespeitar e muito menos faltar às regras familiares. Era um tempo em que nós chamávamos pai, mãe, madrinha e qualquer outra pessoa de idade mais avançada, de senhor ou senhora. Hoje….. deixem pra lá!Por que a gente tinha pressa em que o tempo passasse para chegarmos à idade adulta, para sermos homens, e não meninos?! Que pressa boba, parece que éramos felizes, porém não alcançávamos o valor daquela felicidade. O tempo passou, assumimos as rédeas de nossas vidas e aí tivemos que conviver cara a cara com nossos erros, alguns que nos machucaram bastante, todavia aprendemos com eles em vez de ficarmos a pôr sempre a culpa na vida. Depois de estar morando no Rio de Janeiro, passados alguns anos voltei a Belém para administrar um curso de treinamento de pessoal pelo BB. Certa noite eu tomei um taxi e fui ao bairro do Marco tentar rever o cenário do meu passado. A casa ainda estava de pé, meio abandonada, certamente magoada, pois sabia que pouco depois ia ser demolida para dar passagem ao progresso. Maldito, mas necessário (será mesmo?!) progresso.Ah saudade bendita, que viagem tu me proporcionaste naquela noite. Obrigado.

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