Botequim de fé

    “Da história desses bares, lamento não ter estado presente no dia posterior ao da morte do Tancredo Neves, eis que, em respeito à consternação geral, os botequins não abriram as portas. ” De vez em quando, sem nenhum motivo, me sinto “roubado” em alguma idéia.  Foi o que ocorreu quando li no Globo Online, o Aydano André Mota, sacar que bebedor profissional é como torcedor de futebol: cada um tem seu botequim de fé, que defende com unhas e dentes.  A argumentação é que a discussão sobre os botequins tomou o lugar que já foi um dia, da política e do futebol.  Concordo plenamente, já que os partidos políticos estão desmoralizados e os clubes vivem da exportação dos seus ídolos. Por esses motivos é que, atualmente, somente o arranca-rabo sobre o melhor boteco é capaz de provocar as intermináveis “saideiras”.  “Biriteiro” que se preze possui bar de fé e, como todo torcedor fanático, só vê defeitos no boteco do adversário e somente qualidades no que freqüenta.  Para ele o “seu português” é mais simpático, “estica” mais o fiado, não é mesquinho, pão-duro, essas coisas. Nas proximidades da minha casa, em Friburgo havia, na mesma calçada, dois bares de construção e designer internos praticamente iguais. Os mobiliários eram antigos, de madeira e mesas com tampo de mármore. Lá no fundo, do lado direito, havia a copa, onde eram servidos os traçados, quinados e “paus-pereiras”. Do lado esquerdo, o tradicionalmente fétido WC, com pó de serra espalhado no chão e rodelas de limão jogadas nos sanitários para amenizar o cheiro. Na imensa e antiga geladeira de madeira eram armazenadas as cervejas de segunda categoria e a mortadela que, se fosse pedida, era fatiada com um facão enferrujado. Nas altas prateleiras, só alcançadas com escada, ficava o estoque de bebidas. Uma vitrine de cigarros e outra onde repousavam, em pratos esmaltados, os tira-gostos com jeitão de “antes de ontem”: ovos cozidos de casca tingida de rosa, lingüiça fina queimada, chouriço de um preto desbotado e uma amarelada costelinha suína encharcada de gordura. Em cima do balcão apenas potes embaçados de picles e cebolas em conserva.      Seus freqüentadores chegavam cedo, alguns antes dos estabelecimentos abrirem, e, só saiam, a muito custo, quando fechavam, lá pelas nove da noite. Faziam um único intervalo para almoçar em casa.  No restante do tempo, ocupavam as poucas mesas para um carteado, ler jornal, discutir futebol ou jogar conversa fora resolvendo todos os problemas nacionais.  Atrás de uma das colunas dos bares, ficava o “escritório” do apontador de bicho, cuja freguesia era formada basicamente por mulheres idosas.Quem era freqüentador de um desses bares só entrava no “adversário” em caso de muita necessidade, ou se o “de fé”, pelo motivo mais extremoso do mundo, estivesse fechado, o que ocorria, no máximo, uma vez por ano.  Aí, davam uma desculpa qualquer para uma conversa a sós, na copa, com o proprietário, onde, disfarçadamente, “tomavam uma”.  A estratégica operação era repetida várias vezes naquele dia. Da história desses bares, lamento não ter estado presente no dia posterior ao da morte do Tancredo Neves, eis que, em respeito à consternação geral, os botequins não abriram as portas. Reza a lenda que os freqüentares assíduos, pegos de surpresa, depois de certo tempo sem rumo, reuniram-se em frente ao seu respectivo bar “de fé”, de forma inconsciente. Depois, desolados pelo fechamento, passaram a andar agrupados, de um lado para o outro da calçada. O fato marcante para quem assistiu ao descompasso dos “biriteiros” das redondezas naquela fatídica data foi que, ao passarem uns pelos outros, não ousaram cumprimentarem-se. Sequer se olharam. Ninguém arrisca afirmar se a atitude foi motivada apenas por uma estudada indiferença ou se “trocaram de mal” em virtude de alguma divergência irremovível movida a álcool.  

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