COMPANHEIRA SOLIDÃO

    Nunca me senti bem estando totalmente sozinho. Não nasci para ser solitário. Gosto sim de ter alguns momentos de isolamento, sabendo, porém, que no quarto ao lado, na sala ao lado, ou logo para além da porta do meu escritório, mesmo havendo silêncio, ali também há vida, uma espera, um reencontro, uma solitude acompanhada. Hoje pensei nisso, pensei porque me percebi realmente só. Abri a porta e não tive para quem abrir meus braços, ou dirigir meus beijos, ou mostrar um novo poema que começava a vir à luz. Apenas eu carregava comigo a vida neste corpo meio sonolento, face ao adiantado da hora, e meio desiludido, face à realidade que me rodeava. Nas fotos os mesmos olhares e sorrisos que eu decorara porque me acompanham há tanto tempo. Por duas janelas abertas entravam sinais de uma noite luarenta que iluminavam parcialmente a cama, agora desnecessariamente larga. A brisa nordeste beijava e balançava suavemente as cortinas. O frio abonava ainda mais a solidão.  Da escada não vinham passos. Seus degraus lembravam capítulos de uma história bem vivida. As paredes mostravam-se indiferentes, testemunhas que sempre foram do muito que hoje se reduziu a nada. Eu respirava um ar impregnado de recordações, reminiscências flutuando no etéreo. Ocorreram-me esses versos de Luis de Camões, que podiam estar, naquele momento, a repetir meus pensamentos: “Se lá no assento etéreo, onde subsiste, / memória desta vida se consente, / não te esqueças daquele amor ardente / que já nos olhos meus tão puro viste.” Um ruído quebrou o silêncio mas não desfez meu abatimento. Eu estava irremediavelmente só. Por todas as crenças que eu sustente, por todas lições que eu aprenda, por toda uma visão que eu alimente de que a morte é apenas uma mera mudança de estado, de plano, de condição de existência, a verdade era a mesma: eu estava só.  Retornei ao meu escritório e passeei a vista pelas estantes. Rejeitava qualquer pensamento. Olhei para os livros, as fitas de tantos vídeos que produzi por anos, as lindas miniaturas de motos e carros antigos de minha pequena coleção, alguns troféus obtidos em concursos literários… Fechei os olhos e mergulhei no escuro. Desliguei os meus sentidos físicos, abortei a emoção, frustrei o pranto. O tempo não era importante pois não remediaria nada, nada mesmo. Ser hoje, amanhã, ou sei lá quando, não fazia diferença. O vazio permaneceria intangível, porém mais presente que nunca. Era para valer, doía na alma, invadia minha paz, torturava o coração, seqüestrava a esperança.  Lembrei-me de repente de uma quadrinha que escrevi em setembro/1999: “O perto é tão longe, presente, / Que o longe é estar perto sozinho, / Saudade é sentir bem de frente / A vida tão fora do ninho.” Eu falava então de saudade sem a ter no coração. É assim a inspiração quando chega e, sem bater à porta, apresenta-se como um estímulo, talvez vindo de um mosaico do tempo que nos traz, sem percebermos, o saldo de algum episódio que marcou nossa vida, algo incidente que sobreveio e venceu o esquecimento. “A Arte nasce da dor, assim como a pérola”,  escreveu-me outro dia a boa amiga Lúcia Santos, ao comentar outro texto meu. Ela me enviou uma mensagem que lera em uma reunião com suas consultoras onde está dito que “Uma ostra que não foi ferida não produz pérolas…” Lindo texto que explica porque “as pérolas são feridas curadas”. À parte a conotação que buscava encomiar minha crônica “De Regresso”, Lúcia está certa ao afirmar que a arte nasce da dor. Não obrigatoriamente, é verdade, mas com certeza ela surge mais vigorosa com o sofrimento. Lembro Mário de Andrade, Augusto dos Anjos entre outros, só para me referir à poesia brasileira. Neste momento, porém, eu falo de solidão tendo-a como companheira, como presença,  até bem-vinda, por que inevitável. Mas solidão também dói, e muito, particularmente se associada à saudade. Esta é, muitas das vezes, incurável. Vence-se o medo, o pânico, a depressão, mas a saudade pulsa sempre, sempre, qual um ferimento que dói e lateja. No silêncio que lê meus pensamentos faço reflexões e recordo-me desses versos que compõem parte do meu poema “Estilhaço”, escrito em agosto de 2000: “Quantas desculpas esqueciDe pedir por arrependimentos,Por pesares, por negligências,Quantas súplicas guardeiNo silêncio de um momentoEm que eu me arrependi!” As vezes estou profundamente só, embora com a atenção e carinho de tantos amigos e amigas. Mas, solidão não se divide, não se compartilha, ainda mais se ela é imposta por uma ausência de presente e uma negação de futuro. Neste caso permito-me rever palavras de Manuel Bandeira: “Ah, como dói viver quando falta a esperança!” Mas é preciso viver, acreditar no quase impossível, perceber que a lágrima alivia mas não deve torturar, e sentir a solidão como companheira, não como carrasco. Saber estar só, mas estar vivo, acreditar que pode e vai conseguir, pois o amor não morreu. Termino com palavras de Machado de Assis: "…pode a sorte separar-nos, ou a morte de um ou de outro; mas o amor subsiste, longe ou perto, na morte ou na vida". 

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