E O PALHAÇO O QUE É?

    Dentre os meus inúmeros defeitos dois são insolúveis e só pioram com o passar do tempo: a desorganização e a falta de memória. Por isso tenho a impressão de que já contei por aqui pelo menos metade desta história sobre circos, mas como procurei nos meus alfarrábios e só encontrei um rascunho desconexo e incompleto, acredito que o assunto mereça uma “atualização”.É que há tempos vi na TV a proprietária do Circo Garcia explicando que a principal causa do arreamento das lonas foi que a modernização das atrações exigiria um aumento expressivo dos preços dos ingressos, única forma a permitir que a receita cobrisse as despesas, o que afastaria grande parte do público por falta de poder aquisitivo. O pior efeito colateral dessa penúria é a estagnação técnica das atrações que junto com a proibição de utilização de animais, são fatores impeditivos aos circos de concorrerem em pé de igualdade com as modernas formas de lazer. Entretanto, agora, assisti também pela televisão que em Belo Horizonte as arenas ganharam uma injeção de ânimo e estão atraindo bom público aos seus espetáculos, fato que – particularmente – me deixa feliz porque já fui um “circense” inveterado.Na adolescência desenvolvi alguns artifícios para medir a qualidade do espetáculo. O mais utilizado era incentivar os amigos e conhecidos a assistirem as sessões iniciais e depois lhes fazer uma infalível pergunta: que tal as curvas da trapezista e da bailarina? As informações obtidas sobre os atributos físicos das moças balizavam a decisão da compra do ingresso. Até porque meu dinheiro para esse tipo de diversão era suado. Provinha de furtivas e incansáveis buscas em fundos de quintais vizinhos de quilos de cobre e chumbo e dúzias de garrafas vazias, que depois eram vendidas por uma ninharia em ferros-velhos. Checados os atributos femininos, direcionava minhas antenas para a atuação dos palhaços. Julgava seus desempenhos pelo ângulo da curvatura do bico dos seus sapatos; pelo colorido do remendo costurado na folgadíssima calça vermelha pendurada por largos suspensórios e pela quantidade de tapas, tombos e gases que se aplicavam mutuamente.Se as informações sobre a trapezista e a bailarina fossem de que as moças eram "simplesmente maravilhosas", renegava a arquibancada de madeira e usava um outro estratagema para assistir o "espetáculo" bem debaixo do picadeiro: compartilhava minhas informações com um amigo cujo progenitor, bem endinheirado, só assistia às sessões confortavelmente instalado no melhor lugar do circo. Descobríamos o dia em que ele iria e "por acaso" o encontrávamos na fila. Invariavelmente ele nos comprava ingressos ao seu lado. Assistindo todo aquele "panorama" bem de perto e de baixo para cima, ficávamos apaixonados logo à primeira vista e por pelo menos uma semana, urdíamos mirabolantes planos de raptar as moças dos braços dos possíveis rivais e fugirmos para bem longe. A lembrança da última apresentação do Circo do México em Friburgo ainda me incomoda. É que decidi levar a minha mãe e combinei esperá-la na entrada. Como faltava pouco para o início da sessão e ela não aparecia, sem perceber, fui comprando doces e bobagens. Em cima da hora ela chegou e o que sobrou não deu para comprar um único ingresso. Jamais vou esquecer a decepção expressada no seu rosto naquela tarde.Os circos também me proporcionaram uma das maiores “derrotas” da minha vida. Foi quando andava em adiantadas e quase concluídas “tratativas” de namoro com uma morena de cabelos negros escorridos, chorosos olhos caramelados, corpo cuja beleza somente os mais atentos percebiam e rosto emoldurado por um fetiche: um defeito no canto da boca, do tipo que a Camila Morgado acentua no filme “Olga”. Num domingo pela manhã, estava sentado conversando com uns amigos na Praça Getúlio Vargas, quando a morena, sem nos olhar, desfilou à nossa frente de mãos dadas com um sujeito que eu nunca vira, comendo algodão doce e rindo até de topadas no calçamento do passeio. Sem conseguir dissimular minha irritação e decepção ante a cena, perguntei e soube ali mesmo que o meu “rival” era o palhaço do circo, que vestido a paisano, eu não havia reconhecido. Por um bom tempo, além do desapontamento, ainda curti o trauma de não comparecer as sessões, isso porque não podia ouvir nem de longe aquele bordão circense em que o mestre de cerimônias do espetáculo, plantado bem no centro do picadeiro, incita a platéia:- E o palhaço o que é?E todos respondem em uníssono: – É ladrão de mulher!!!

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