JOÃO “SEM MEDO”

    O conceito de "celebridade" (assim como o de "doutor") se vulgarizou de tal forma que hoje, qualquer um, mesmo aqueles que os "gatos cheiram e jogam areia por cima", são assim rotulados. Pensei nisso depois que li a biografia de João Saldanha, escrita por André Iki Siqueira.O livro conta que Saldanha, o João "sem medo", viveu muitas vidas numa só:foi membro do clube dos cafajestes no Rio, ativista do Partidão, jogador e técnico de futebol, estrategista militar clandestino,  e – literalmente – o "comentarista que o Brasil consagrou". Contudo, a política era a atividade pela qual era apaixonado.Durante boa parte da sua vida atuou clandestinamente em prol do PC, realizandomissões no Brasil e no exterior.  Filho de político, cedo abandonou o trabalho no cartório do pai.Em 1957, foi campeão carioca como técnico do Botafogo. Depois, passou a trabalhar na imprensa, introduzindo em seus comentários sobre futebol expressões populares como "zona do agrião" (parte do campo próxima à grade área), "tá no bagaço" (jogador fisicamente esgotado), "cabeça de bagre" (jogador ruim). Os profissionais que trabalharam como João colecionam histórias do comentarista. Na TV Globo, apresentava o programa "Dois Minutos" sobre assuntos diversos. O carnaval se aproximava, e ele foi proibido de falar do assunto. O programa era ao vivo, e o portelense João disse: – "Semana do carnaval"… Mangueira (sinal de mais ou menos com a mão)… Salgueiro (sinal de negativo)… Portela (sinal de positivo). E se despediu com a sua continência invertida. Em 1969, sem que ninguém saiba exatamente a razão, foi convidado para ser técnico da seleção e classificou o Brasil para a Copa de 1970.Em  janeiro daquele ano, no México, deu uma entrevista contra o governo Médici.Em março, circulou o boato de que o então presidente queria a convocação de Dario, centro-avante do Atlético Mineiro. João daria o boato como verdadeiro e responderia na linha de que o pedido foi interferência indevida. Sua saída da seleção estava decretada. A motivação pode ter vindo com a invasão da concentração do Flamengo armado para tirar satisfação com Yustrich, o técnico do clube, que o ofendera em um programa de rádio. No capítulo das armas, perseguiu, na sede do Botafogo, o goleiro Manga, a quem acusou de ter se "vendido" numa final. Em outra ocasião, deu uns tiros dentro de uma farmácia por ter considerado que o dono do estabelecimento havia discriminado uma empregada da sua casa.  Nos anos 70, na Rádio Globo, transformou-se no "comentarista que o Brasil consagrou". Sua audiência provocava eco. Até os presentes ao jogo, só acreditavam no jogo que o João via. Saldanha possuía vasta cultura, sabia tudo e o que não sabia inventava. Histórias como a cobertura da Grande Marcha de Mão-Tsé-Tung, na China, eram motivos de chacota. O jornalista Sandro Moreyra, dizia que João era tão íntimo e ia tão junto de Mao que, em dado momento pisou no calo do líder comunista: "Pôla João", teria reclamado Mao. Contudo, muitos dos seus relatos, tempos depois, de alguma forma, eram comprovados. João era muito requisitado para entrevistas no exterior. Na TV alemã, em 1968, o apresentador o perguntou: "O que o senhor tem a falar sobre a matança de índios no Brasil?" João não pestanejou: "Nosso país tem 470 anos de história. Nesse tempo, foram mortos menos índios do que me dez minutos de uma guerra provocada por vocês. Os selvagens são vocês". Saldanha chegou a dizer que o contragolpe provocou a retirada da emissora do ar. Versão que fica por conta do folclore. Mas, não resta dúvida de que a lucidez e rapidez da réplica foram a altura de uma autêntica e raríssima celebridade internacional brasileira. 

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