JOCA DO TROMPETE

    Outro dia, passeando pela Avenida Visconde de Pirajá, em Ipanema, mais uma vez testemunhei a presença dos “homens estátua”. Eles aparecem muito na Europa, especialmente no verão, em qualquer país que se vá. Aqui isto ainda é novidade. Mas, na esquina daquela Avenida com a rua Garcia D’Ávila, nós nos reencontramos com aquele simpático senhor. Ele fica sentado em uma cadeira encostada a uma árvore, à frente dele uma estante e suas partituras. Passa boa parte do tempo a tocar o seu trompete.  A grande maioria das pessoas simplesmente o ignora, alguns nem sequer olham para ele. Eu não entendo isso, afinal ele nada pede, não agride ninguém, muito menos ameaça os transeuntes. Aquele simpático senhor apenas quer mostrar sua arte tocando seu velho trompete. Convenhamos que ouvir música de boa qualidade é sempre bom, ainda mais no cenário musical que a mídia anda a nos impor. É claro que ele deixa ao seu lado uma pequena caixa de madeira onde quem desejar pode depositar algum valor. Ninguém está obrigado a nada. Isto também é muito comum na Europa. Já contei em crônicas minhas experiências em vários países europeus ora com alguns conjuntos se exibindo numa praça ou em ruas, ora apenas um músico solitário a tocar seu instrumento. Sempre paro, ouço e colaboro. No caso do trompetista de Ipanema nós paramos, sorrimos para ele e ao terminar a execução de Garota de Ipanema depositamos mais uma vez uma nota na caixa que lamentavelmente estava vazia. Desta feita ele nos surpreendeu. Chamou-me e disse ser escritor e poeta. Presenteou-me com dois poemas. Eu os guardei para ler em casa com a devida atenção.  Ah sim, eu ia esquecendo de lhes dizer o nome dele, mas pelo título já devem saber: Joca do Trompete. Assim ele se identifica. O Joca me dera duas folhas de papel e vi que havia um poema em cada uma delas. Li e gostei do “Derradeira Sinfonia”. Este foi publicado no jornal “Balcão” que circula, ou circulava, no Rio de Janeiro, no ano de 2007. Colocarei aqui apenas alguns versos, pois a poesia é longa: “Ah!… se eu pudesse reger o fim do mundo / Trocava o troar dos canhões por um grave bem profundo / De uma tuba ponteando uma opereta, e, / Armas como: fuzis, revólveres, metralhadoras e escopetas / Seriam trocadas por trompetes, trombones, requintas e clarinetas.” E a poesia termina com estes versos: “Expulsem seus ódios, seus rancores / Os estourem nos couros esticados dos bombos e tambores / Isso!!! Ordenaria eu, / E num adágio que começou num presto / Toda a Humanidade no seu mais puro manifesto, / Num mar de instrumentos, esperançada, /Finda a noite vem a madrugada. / E um agudo de flautim atinge a ira bem no alvo / E no silêncio, a certeza de que o mundo está salvo. / Ao som de um compassado tema de jazz, / Um coral de adolescentes entoa: / Até que enfim!! O homem encontrou a PAZ” É a palavra do nosso Joca, músico e poeta popular, ignorado por tantos que por ele passam e não têm olhos nem ouvidos para lê-lo ou escutá-lo. Sociedade ingrata e mal agradecida. Mas o Joca, pensando em todos, sem distinção, canta em versos e almeja a paz universal. Ele não se importa com a indiferença da maioria, sabe que no fundo de cada coração há sempre espaço para o amor, ainda que temporariamente sufocado.  A outra poesia dele é ainda mais longa, do tipo poema/crônica, escrita em 1987. Eleição indireta de governo, fim da ditadura, esperanças atiçadas pelo retorno à democracia, morte de Tancredo, assume José Sarney. O espírito crítico do nosso Joca do Trompete fica bem evidente nos versos de “Chora Brasil”.  Ele já falava, há 26 anos, no que hoje está aí ainda mais evidente, agressivo, tornando a vida quase que insuportável. A certa altura diz o poeta: “Isto é verdade meu país? / Andam dizendo que aqui não há mais lei / Se não há lei, foi-se a moral, foi-se a decência / Então, a guerra dos tóxicos e a corrupção / fazem justiça com as próprias mãos / E muitas vezes atingem a inocência.” Na simplicidade de seus versos o Joca já denunciava, já tratava de temas que hoje, mais do que antes, faz parte do nosso dia a dia. Corrupção, tráfico de drogas e de influência, balas perdidas e endereçadas, a “justiça” sendo feita pelas próprias mãos e justo por aqueles que deveriam defender a sociedade, manter a ordem, a decência, a moral, ou não é verdade? Lembram também da festa que fizeram quando aprovaram a nova Constituição? Pois concordo com o nosso Joca, o poeta revoltado, como eu, quando ele escreve: “Pobre Brasil / Em novo texto, polêmico, prolixo, / Fizeram nova Constituição / A anterior até já foi pro lixo / E na nova há manobras de Centrão.” E o nosso poeta popular não deixa por menos ao dizer: “Com a nação inteira esperançada / A nova Constituição foi promulgada / A classe política ficou mais desacreditada / E para o povo, só mudou a redação.” – É meus amigos, o Joca sabe das coisas e enxerga melhor que muitos de nós. Seu poema/crônica “Chora Brasil” tem 85 versos dos quais vou citar somente mais esses: “Toma vergonha na cara, povo brasileiro! / Do teu bolo levaram o melhor pedaço / Quantos chefes de família / Perdidos no tempo e no espaço / Com o horizonte embaçado do homem que não lê / Numa terra onde se dorme e se acorda / Sob o efeito do ópio da novela da TV.” Na nossa próxima ida ao Rio espero encontrar novamente o Joca do Trompete. E numa ida ao Google descobri que ele também é um bancário aposentado, como eu. Vou querer conhecer mais um pouco do seu trabalho em poesia, com certeza. Não sem antes ouvi-lo ali mesmo, naquela esquina de Ipanema, onde com seu trompete e seu bom gosto musical nos alivia da torturante “sinfonia” de buzinas. Para encerrar vai uma dica: querem conhecer melhor este personagem? Entrem no Google e coloquem lá no retângulo apenas JOCA DO TROMPETE.

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